O Brasil e, em especial, o estado de São Paulo vivem uma profunda, porém silenciosa, crise de saúde pública: o crescente adoecimento mental relacionado ao trabalho. Com altos índices de afastamentos por transtornos como ansiedade, depressão, burnout e estresse ocupacional, o problema afeta trabalhadores dos setores público e privado, e coloca em dúvida as atuais condições laborais.
Na busca por produtividade e eficiência, emergem sintomas de esgotamento emocional, sofrimento psíquico e desamparo institucional.
Adoecimento silencioso e solitário
Dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, coordenado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, mostram que os afastamentos por transtornos mentais relacionados ao trabalho saltaram de 201 mil para 472 mil casos, entre 2022 e 2024, um aumento de 134%.
O estado de São Paulo registrou mais de 133 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais em 2024, um aumento de 67% em relação aos quase 80 mil casos de 2023.
O tempo médio de afastamento por transtornos mentais supera 100 dias, impactando, de forma sem precedentes, a vida dos trabalhadores.
O adoecimento mental relacionado ao trabalho é, frequentemente, um processo silencioso e solitário. De acordo com o professor Christophe Dejours, do Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), em Paris, o sofrimento psíquico tende a ser normalizado nas organizações. Os trabalhadores, muitas vezes, internalizam a ideia de que o sofrimento é parte “natural” da produtividade e da vida laboral, o que contribui para o silenciamento dos sintomas iniciais de esgotamento, ansiedade ou depressão.
Estudos como “Adoecimento mental e as relações com o trabalho: estudo com trabalhadores portadores de transtorno mental”, de Márcia Fernandes, Dinara Silva, Aline Ibiapina e Joyce Silva, mostram que o estigma social associado às doenças mentais desestimula o pedido de ajuda. O medo da desvalorização profissional, da perda do emprego ou de ser visto como fraco contribui para o isolamento do trabalhador que adoece psicologicamente.
Sob a lógica neoliberal que domina o mundo do trabalho, como apontado pelo professor Ricardo Antunes, da Unicamp, há uma tendência à individualização do fracasso e do sofrimento. As pressões por metas, produtividade e desempenho são internalizadas, e as consequências emocionais são vivenciadas de forma privada e isolada, como se fossem falhas individuais. Não são percebidas, pelo trabalhador, como imposições intencionais na organização do processo de trabalho.
No sistema bancário, por exemplo, a pesquisadora e médica do trabalho Maria Maeno aponta que a forma como o trabalho é organizado está no centro da crise de saúde mental enfrentada pelos trabalhadores.
Com base na lógica da máxima produtividade e do lucro, os bancos impõem metas abusivas, eliminam postos de trabalho, terceirizam funções e adotam modelos de gestão que naturalizam o controle e a humilhação. Nesse contexto, a tecnologia não surge como aliada, mas como ferramenta de vigilância e intensificação da cobrança. Sistemas digitais que monitoram o desempenho em tempo real, mecanismos de avaliação por parte dos clientes e metas automatizadas acabam por subjetivar a culpa — o trabalhador internaliza o fracasso, ainda que este decorra de um modelo organizacional adoecedor.
Esse adoecimento, com origem em estratégias empresariais, tem sido tratado como uma responsabilidade individual. O custo humano é altíssimo: transtornos como ansiedade, depressão e burnout se tornam cada vez mais comuns, ao passo que o custo social é deslocado para o sistema público de saúde e previdência, isentando as empresas de qualquer responsabilização concreta.
Servidores públicos também adoecem mentalmente
Em “Abalos na saúde mental do servidor público: algumas evidências encontradas nas três esferas federativas brasileiras”, Ana Warpechowski analisou 24 pesquisas realizadas entre 2009 e 2019 em instituições públicas das três esferas federativas — federal, estadual e municipal — e revelou dados contundentes sobre o impacto dos transtornos mentais e comportamentais (TMC) na vida funcional dos servidores brasileiros.
A pesquisa apontou que os TMC estão entre as principais causas de afastamentos temporários e aposentadorias por invalidez entre servidores estatutários. Transtornos de humor, como depressão e bipolaridade, além de ansiedade, estresse e uso abusivo de substâncias psicoativas, figuram entre os diagnósticos mais frequentes. Em alguns órgãos públicos, esses transtornos representaram até 50% dos motivos de licenças médicas.
O estudo também destaca que os ambientes de trabalho públicos frequentemente operam sob condições estressoras: excesso de demanda, precariedade estrutural, mudanças administrativas constantes, pressão por metas, relações hierárquicas rígidas e baixa valorização profissional. Esses fatores, somados à invisibilidade histórica do sofrimento psíquico no setor público, contribuem para o agravamento do quadro.
Dados do Sistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor (SIASS), reforçam esse estudo, ao mostrarem que, entre 2013 e 2023, uma média de 215 servidores públicos federais foram afastados do trabalho por ano para cuidar da saúde mental.
Nas universidades públicas brasileiras, o estudo “Trabalho docente em universidades públicas brasileiras e adoecimento mental”, de Taís Campos, Renata Véras e Tânia Araújo, evidencia que a intensificação do trabalho, a precarização dos vínculos empregatícios e a pressão por desempenho têm configurado um cenário alarmante de desgaste psíquico dos docentes. Além disso, o modelo de gestão baseado em avaliações constantes, metas de produtividade e exigência por publicações científicas em periódicos de alto impacto tem contribuído para um processo de controle institucional intensificado.
O livro “Trabalho e saúde dos professores: precarização, adoecimento e caminhos para a mudança”, organizado por Cleiton Lima, Cristiane Reimberg, Jefferson Silva e Ricardo Lorenzi, publicado em 2023, mostra que, em 2015, houve um total de 136 mil afastamentos médicos de professores na rede estadual de São Paulo. Desse total, 28% estavam relacionados a transtornos mentais e comportamentais.
Nos primeiros seis meses de 2023, a rede estadual de ensino de São Paulo registrou mais de 20 mil afastamentos de professores por motivos de saúde mental, o equivalente a cerca de 110 casos por dia, representando um aumento de 15% em relação ao mesmo período de 2022. Os afastamentos se devem a transtornos como depressão, ansiedade e crises de pânico.
Além dos docentes, os diretores escolares também vêm sendo afetados, com um aumento de 35% nos afastamentos por saúde mental no mesmo período. Os dados foram obtidos pela TV Globo por meio da Lei de Acesso à Informação.
Capitalismo de vigilância no ambiente de trabalho
Com o avanço das tecnologias digitais, o monitoramento no ambiente laboral tornou-se mais sofisticado, intrusivo e invisível. Sistemas informatizados, proliferação de portarias e normas de controle institucional, softwares de produtividade, rastreadores de tempo, controle de cliques, reconhecimento facial, sensores e webcams tornaram-se ferramentas de gestão baseadas em dados. Mas seu uso vai além da simples busca por eficiência. Trata-se de um componente central do que a pesquisadora norte-americana Shoshana Zuboff denominou capitalismo de vigilância.
Zuboff, autora de “The Age of Surveillance Capitalism”, define esse fenômeno como uma nova lógica econômica que transforma a experiência humana em matéria-prima gratuita para práticas comerciais ocultas de extração, previsão e venda. No ambiente de trabalho, isso se traduz na coleta massiva de dados sobre desempenho, comportamento, emoções e interações dos empregados, muitas vezes sem transparência, consentimento informado ou controle por parte dos trabalhadores. Como alerta a autora: o poder do capitalismo de vigilância é alicerçado em assimetrias radicais de conhecimento. Os empregadores sabem tudo sobre os trabalhadores, enquanto o saber dos trabalhadores sobre o que fazem os gestores é limitado.
Em “Algorithmic versus human surveillance leads to lower perceptions of autonomy and increased resistance”, as pesquisadoras Rachel Schlund e Emily Zitek indicaram que a supervisão algorítmica é percebida como mais intrusiva, reduz a percepção de autonomia e aumenta a resistência dos trabalhadores — manifestada por comportamentos de resistência, críticas ao sistema e menor produtividade.
Outro estudo importante, “AI in Contact Centers”, de Virgínia Doellgast, Sean O’Brady e Jeonghun Kim, revelou que a intensificação da vigilância digital após 2020, com ferramentas capazes de analisar em tempo real chamadas, comportamento, pausas e até entonação vocal, gerou sensação constante de pressão e insegurança. Muitos trabalhadores relataram preocupação com a falta de transparência sobre os critérios de avaliação dos sistemas, o que contribui para o desgaste emocional.
Em São Paulo, sindicatos de categorias como bancários, operadores de telemarketing e professores têm registrado denúncias frequentes de monitoramento excessivo, que incluem vigilância por webcam, pausas cronometradas e avaliação algorítmica de produtividade.
O Sindicato dos Bancários de São Paulo relatou que o Itaú Unibanco implementou uma ferramenta de inteligência artificial conhecida internamente como “Robô do PIC”, usada para monitorar ligações de bancários, especialmente em atendimentos sobre títulos de capitalização, na região de Campinas. O sistema detecta palavras-chave como “resgate”, “investimento” ou “poupança” e sinaliza supostas irregularidades em vendas — sem fornecer explicações claras sobre o que motivou a advertência.
Baseado em uma revisão sistemática de 15 artigos científicos publicados a partir de 2010, o estudo “Condições de trabalho em Call Centers e seus impactos na saúde mental do trabalhador”, de Rodrigo Teixeira e Suelen Moreira, mostra que o setor é marcado por intensa utilização de sistemas tecnológicos de informação e comunicação, os quais são empregados não apenas como suporte às atividades operacionais, mas também como instrumentos de vigilância e controle rígido sobre os operadores.
A APEOESP (Sindicato dos Professores Estaduais de São Paulo) vem alertando para o aumento significativo de denúncias de assédio moral, coação, ameaças e abuso de poder nas escolas públicas estaduais desde a adoção de plataformas digitais que monitoram a produtividade de docentes e alunos. A ferramenta de Business Intelligence impõe metas automáticas — tanto em tarefas dos alunos quanto em uso obrigatório pelos professores — gerando clima de pressão, medo de demissão ou transferência, adoecimento da categoria e restrição da liberdade didática e criatividade no ambiente escolar.
Estudo recente de Shreya Chowdhary, Anna Kawakami, Mary Gray, Jina Suh, Alexandra Olteanu e Koustuv Saha, “Can Workers Meaningfully Consent to Workplace Wellbeing Technologies?”, argumenta que o consentimento ao monitoramento em contextos laborais é frequentemente viciado ou coercitivo, pois o trabalhador se vê obrigado a aceitar tais condições sob pena de retaliação ou desemprego.
Zuboff adverte que essa lógica não apenas altera o funcionamento das organizações, mas reconfigura as relações sociais e os limites éticos da atuação empresarial, criando uma nova arquitetura de poder baseada na predição e modulação do comportamento humano.
Consequências psicossociais
A presença constante de dispositivos de controle digital no cotidiano de trabalho tem sido associada a quadros de ansiedade crônica, distúrbios do sono, perda de autoestima e episódios depressivos. A pressão por metas, somada à falta de espaço para expressar angústias e ao medo de punições, contribui para o silenciamento do sofrimento.
Estudos como “Intensificação do trabalho e saúde do trabalhador: uma abordagem teórica”, de José Pina e Eduardo Stotz, publicado na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, e “Trabalhando o tempo todo em qualquer lugar – como lidar com os desafios para a saúde dos trabalhadores na sociedade contemporânea”, de Lúcia Rotenberg, publicado na Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, sustentam que há relação direta entre organização do trabalho, intensificação do controle e adoecimento mental.
A dissolução das fronteiras entre tempo de trabalho e tempo livre agrava quadros de exaustão mental, ansiedade e distúrbios do sono, sobretudo quando o trabalhador permanece continuamente disponível para responder a demandas, mensagens e reuniões, sem pausas claras para descanso ou desligamento.
A hiperconectividade, longe de ser apenas uma característica técnica do trabalho digitalizado, assume um papel central no controle subjetivo do tempo e do comportamento, gerando uma autovigilância constante.
O adoecimento mental dos trabalhadores não pode ser entendido como um fenômeno isolado ou meramente individual, mas como expressão direta das formas de organização e gestão do trabalho que se tornaram hegemônicas nas últimas décadas.
Caminhos para a prevenção
O enfrentamento do adoecimento mental no trabalho exige muito mais do que iniciativas pontuais ou soluções individuais: trata-se de um desafio estrutural, que demanda ação coletiva e transformação institucional.
A crise atual está diretamente relacionada ao modelo produtivo hegemônico, centrado na competitividade extrema, na precarização das relações laborais e na vigilância digital. Nesse contexto, entidades sindicais, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e representantes dos trabalhadores têm um papel decisivo na construção de uma agenda política e institucional de enfrentamento.
É fundamental que essas entidades exijam de empresas e governos:
• Regulação clara, transparente e democrática sobre o uso de tecnologias de monitoramento no trabalho, com limites éticos e legais que impeçam abusos e garantam o consentimento livre e informado dos trabalhadores;
• Elaboração e implementação de políticas públicas de saúde mental no trabalho, construídas com participação efetiva dos trabalhadores e fundamentadas em abordagens preventivas, coletivas e intersetoriais;
• Mudanças nos modelos de gestão e nas formas de organização do trabalho, priorizando relações laborais mais humanizadas, cooperativas e inclusivas, que valorizem o bem-estar, a escuta e o reconhecimento profissional.
A ampliação do controle digital sobre corpos e mentes — característica central do capitalismo de vigilância — não pode ser naturalizada. Ao contrário, exige novas formas de resistência e regulação. Invisibilizar o sofrimento psíquico é reforçar um sistema que adoece e descarta. Visibilizar essa crise é o primeiro passo para transformá-la.
Restituir a dignidade no trabalho, criar espaços de cuidado e reconstruir vínculos de solidariedade entre os trabalhadores são atos políticos fundamentais para enfrentar um sistema que, em nome da eficiência, compromete vidas. Em tempos de metas, métricas e algoritmos, resistir também é cuidar.
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.