Nas últimas duas décadas, a relação entre São Paulo e a China evoluiu de uma conexão essencialmente comercial para uma engrenagem estratégica da economia paulista. De commodities agrícolas a megainvestimentos em infraestrutura e indústria, a potência comunista asiática ocupa hoje posição central no reposicionamento produtivo do estado.
A China segue consolidada como a segunda maior economia do mundo, com um PIB estimado em US$ 18 trilhões em 2024 e crescimento anual na casa dos 4,8%. Sua base produtiva é ancorada na manufatura de alta tecnologia, no setor de serviços digitais e no comércio internacional, liderando as exportações globais, especialmente em eletrônicos e maquinaria, segundo dados da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento).
A elevação do poder de compra interno, com uma renda média per capita próxima de US$ 23 mil (ajustada pela paridade de poder de compra), ampliou o mercado consumidor e potencializou novas oportunidades para empresas estrangeiras. Além disso, a China eliminou a pobreza extrema em 2020, um feito histórico que retirou cerca de 800 milhões de pessoas dessa condição, segundo o Banco Mundial. A expansão da classe média, hoje estimada em 550 milhões de pessoas, deverá alcançar 700 milhões até 2030, um mercado consumidor em franca ascensão.
China: protagonista do comércio exterior paulista
São Paulo mantém-se como um dos maiores protagonistas do comércio exterior brasileiro com a China. Em 2023, os Estados Unidos ainda lideraram como destino das exportações paulistas (17,6%), mas a China veio logo atrás (15,6%), seguida pela Argentina (9,4%), conforme dados da Fundação Seade. Esse ranking contrasta com o cenário de 2012, quando a Argentina era o principal comprador.
Entre os principais produtos paulistas exportados para a China, destacam-se óleos brutos de petróleo (8,8% do total exportado), açúcar de cana (8,7%), óleo combustível (4,4%), soja (4,3%) e automóveis (3,1%).
No primeiro quadrimestre de 2025, as exportações paulistas alcançaram US$ 21,4 bilhões (19,9% do total nacional), enquanto as importações somaram US$ 28,5 bilhões (31,8% do total brasileiro), conforme relatório do Instituto de Economia Agrícola (IEA-Apta). Nesse mesmo período, a China foi o destino de 39,6% das exportações paulistas de carnes, 35,4% de produtos florestais e 71,4% da soja produzida no estado.
Nas importações, a supremacia chinesa no estado se consolidou: entre 2013 e 2023, a participação da China nas compras feitas por São Paulo subiu de 14,4% para 20,3%, superando os Estados Unidos (17,6%).
O avanço dos investimentos chineses
São Paulo concentra quase 40% de todos os investimentos anunciados por empresas chinesas no Brasil entre 2007 e 2023, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). Foram 121 projetos, sobretudo nas áreas de energia, infraestrutura e indústria automotiva.
Em 2023, o estado atraiu 39% desses investimentos, seguido por Minas Gerais (29%). Os aportes chineses têm sido em setores como energia elétrica, tecnologia da informaçãoEc, fabricação de automóveis, eletrônicos, extração de petróleo e obras de infraestrutura.
Cidades paulistas na rota dos investimentos
O capital chinês já transformou diversas cidades paulistas, como mostra levantamento da InvestSP:
· Campinas: abriga a fábrica de ônibus elétricos e painéis solares da BYD, o centro de pesquisa da Lenovo (US$ 35 milhões) e a expansão da CPIC (US$ 30 milhões). Além disso, participa do projeto Trem Intercidades, que ligará Campinas à capital paulista.
· Iracemápolis: recebeu R$ 10 bilhões da Great Wall Motors (GWM) para produção de veículos elétricos e híbridos, na planta adquirida da Mercedes-Benz.
· Indaiatuba: acolheu a instalação de uma fábrica da Zoomlion Cifa, com investimento de US$ 9,1 milhões.
· Capivari: recebeu US$ 30 milhões para ampliação da produção de fibra de vidro da CPIC, com foco no setor automotivo e em energia renovável.
· Ribeirão Preto: atraiu US$ 6 milhões da Sol-Millennium, que construiu uma planta de dispositivos médicos, gerando cerca de 150 empregos.
· São Paulo (capital): sedia megaprojetos como a fabricação de 14 trens para a Linha 17 da CPTM pela BYD (US$ 185 milhões) e a participação da PowerChina na expansão da Linha 2 do Metrô (US$ 1,4 bilhão).
· Cravinhos: recebeu mais de R$ 57 milhões da Long Ping High-Tech para um laboratório de biotecnologia agrícola, com 190 empregos gerados.
Guerra comercial EUA e China: efeitos para o comércio exterior paulista
O recrudescimento da guerra tarifária entre Estados Unidos e China, intensificada com as medidas anunciadas em abril de 2025 pelo governo norte-americano, já começa a redesenhar o comércio internacional, com efeitos diretos e indiretos sobre o Brasil e para a pauta exportadora paulista.
De acordo com o estudo “Projeções dos impactos no Brasil da guerra tarifária entre Estados Unidos e China”, conduzido pelo grupo de pesquisa Nemea-Cedeplar-UFMG, o aumento das tarifas norte-americanas, sobretudo contra produtos chineses, tende a provocar uma perda de cerca de R$ 4 bilhões do PIB do estado de São Paulo. Essa perda, projetada, só não será maior devido ao modesto incremento de 0,01%, estimado pelo estudo, no PIB do agronegócio do estado. Esse avanço, embora marginal, resultará principalmente de dois fatores: o fortalecimento das exportações de determinados produtos agrícolas e a consequente redução nos preços de importação.
O setor agropecuário desponta como o principal beneficiado da guerra comercial entre as potências, uma vez que é o pilar da relação comercial entre o estado de São Paulo e a China. A potencial ampliação da presença brasileira no mercado chinês deve reforçar o protagonismo do agronegócio paulista no comércio exterior.
Ainda que o anúncio oficial das tarifas dos Estados Unidos tenha ocorrido apenas em abril, (em que a China sofreu uma sobretaxa média de 145%, enquanto o Brasil foi impactado por um acréscimo mais modesto de 10%), os sinais de reconfiguração no comércio global já eram perceptíveis.
Em março de 2025, mês que antecedeu o anúncio formal, a balança comercial brasileira com a China apresentou um desempenho expressivo. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), as exportações brasileiras para o mercado chinês cresceram 11,1%, correspondendo a um acréscimo de US$ 0,9 bilhão. No mesmo período, as importações oriundas da China também registraram alta, de 9,4%, totalizando um incremento de US$ 0,4 bilhão.
Os dados indicam que, mesmo antes da formalização das novas tarifas, o Brasil e, particularmente, São Paulo, já vinham ajustando suas estratégias comerciais diante do acirramento das tensões entre as duas maiores potências econômicas globais.
Agricultura sustentável e socialmente inclusiva
A intensificação das parcerias entre São Paulo e a China no setor agroindustrial tem potencial para incorporar princípios de sustentabilidade ambiental e justiça social. Essa reorientação, estratégica, tem sido cada vez mais fundamental diante da crescente demanda por alimentos de baixo impacto ecológico e da urgência em combater desigualdades estruturais no campo paulista.
Nesse sentido, como destacado por pesquisadores sobre as relações existentes no meio rural, a China pode representar um parceiro estratégico para o avanço de um novo modelo agroindustrial que seja menos concentrador, mais democrático e ambientalmente responsável.
O professor e pesquisador em agricultura e agroecologia Sérgio Schlesinger defende que a inserção da agricultura nas cadeias agroexportadoras globais deve ser acompanhada por exigências claras de rastreabilidade, boas práticas ambientais e valorização de modos de produção socialmente inclusivos.
Outra contribuição importante vem do geógrafo e professor da USP Ariovaldo Umbelino de Oliveira. De seus trabalhos, pode-se depreender que a relação Brasil-China poderia assumir um papel de democratização das relações do campo se estiver baseada na diversificação produtiva, apoio à agricultura familiar e no intercâmbio de tecnologias sociais.
Na mesma direção, Lúcia Helena Xavier, pesquisadora Cetem (Centro de Tecnologia Mineral) argumenta que acordos tecnológicos com instituições estrangeiras, em especial as chinesas, podem acelerar a transição energética no setor agrícola, estimular o uso de bioinsumos e promover práticas de baixo carbono, desde que haja contrapartidas sociais.
Desde os trabalhos do professor da USP Ricardo Abramovay, pode-se depreender que a China poderia ser um vetor de indução positiva para práticas mais sustentáveis no campo paulista, pautado por critérios de desenvolvimento territorial sustentável e inclusão de pequenas e médias unidades produtivas.
Junto a isso, como pode-se depreender dos trabalhos da pesquisadora da Embrapa Paraná Mariangela Hungria (recém agraciada com o Prémio Mundial da Alimentação), o desenvolvimento de tecnologias e soluções baseadas na natureza é essencial para impulsionar o crescimento agrícola do estado de São Paulo de forma sustentável e inclusiva. Ao integrar conhecimentos ecológicos aos sistemas produtivos, essas abordagens promovem o uso eficiente dos recursos naturais, reduzem a dependência de insumos químicos e fortalecem a resiliência dos cultivos frente às mudanças climáticas.
Nesse contexto, a crescente cooperação entre São Paulo e a China em áreas como inovação agrícola e biotecnologia pode fortalecer ainda mais esses movimentos, favorecendo a troca de conhecimentos e o acesso a tecnologias que combinam tradição e ciência, com impactos positivos tanto para a conservação ambiental quanto para a geração de renda e a redução das desigualdades no meio rural paulista.
Desafios institucionais e a necessidade de uma política estratégica
Apesar da relevância e do dinamismo, a relação sino-paulista enfrenta desafios. São Paulo, embora seja o principal destino de investimentos chineses no Brasil, viu sua participação relativa cair seis pontos percentuais em 2023, segundo o CEBC. Essa retração reflete tanto a crescente atratividade de outras regiões do país quanto sinais políticos ambíguos emitidos pelo estado, que geram incertezas no ambiente de negócios.
Analistas como Tullo Vigevani e Haroldo Ramanzini Júnior alertam que políticas exteriores subnacionais desalinhadas com a estratégia nacional podem comprometer a atração de investimentos e a credibilidade internacional. Esse risco é palpável diante de iniciativas como a criação da “Frente Parlamentar São Paulo & República da China (Taiwan)”, em 2023, que gerou desconforto no ambiente diplomático.
Junto à Frente, a declaração do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao afirmar que “é menos grave o ex-presidente estar na Agrishow do que o líder do MST estar na China“, feita durante a feira agropecuária em maio deste ano, também tem esse mesmo sentido de comprometer a atração de investimento e a credibilidade internacional brasileira e do estado.
A fala do governador revela uma concepção profundamente enviesada e limitada sobre o papel dos movimentos sociais no desenvolvimento da agricultura brasileira e sobre a importância estratégica das relações internacionais, especialmente com a China.
A participação do movimento na comitiva presidencial à China foi um gesto político e diplomático coerente com a necessidade de diversificação e fortalecimento dos canais de diálogo entre Estado, sociedade civil organizada e parceiros internacionais.
Estabelecer interlocuções com a sociedade chinesa, seja por meio de empresas, universidades ou movimentos sociais, amplia as possibilidades de cooperação em áreas como tecnologia social agrícola, segurança alimentar, desenvolvimento sustentável e comércio justo.
Estudos recentes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) indicam que parcerias com os chineses podem impulsionar processos de desenvolvimento produtivo, com transferência de tecnologia e qualificação de mão de obra. Setores como energia limpa, indústria automotiva, biotecnologia e tecnologias para a desenvolvimento social são particularmente promissores.
São Paulo tem diante de si não apenas um parceiro comercial, mas um motor potencial para o desenvolvimento. Assim, fortalecer essa relação significa reconhecer a centralidade da China nas cadeias globais de valor e no redesenho econômico contemporâneo.
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.