Quando a infância é tratada como culpa e o estupro como destino, o país revela o abismo entre sua fé e sua humanidade.
Por Thaís Cremasco
Todos os dias, em algum canto do Brasil, vinte e seis meninas com menos de catorze anos dão à luz. Vinte e seis infâncias interrompidas, vinte e seis corpos marcados por uma violência que o país insiste em disfarçar sob o eufemismo de “gravidez precoce”. Mas não há precocidade possível na barbárie. São meninas, não mães. São vítimas de estupro.
Esses números, que já parecem insuportáveis, escondem uma dor ainda maior: a do silêncio. Pesquisas revelam que o número de partos entre meninas de 10 a 13 anos é quase três vezes superior ao total de registros de violência sexual. A matemática do horror é simples — para cada estupro denunciado, há outros tantos soterrados sob o medo, a vergonha, a indiferença institucional. Uma nação que não protege suas crianças legitima o crime com o silêncio.
É nesse cenário que o Congresso Nacional se debruça sobre um projeto de decreto legislativo que tenta anular uma norma do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente — o Conanda — responsável por garantir atendimento humanizado e acesso ao aborto legal para meninas e mulheres vítimas de violência sexual. O que esse projeto pretende, em última instância, é negar a uma criança violentada o direito de interromper uma gestação que nasceu de um crime. É uma agressão travestida de lei. Um atentado à dignidade de quem já teve a infância violada.
A legislação brasileira é clara. O artigo 217-A do Código Penal não deixa espaço para ambiguidade: ter conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos é estupro de vulnerável. Não existe consentimento. Não existe namoro, nem “iniciação precoce”. Existe crime. E o artigo 128 assegura o direito ao aborto nos casos de estupro ou risco à vida da gestante. Quando uma menina engravida antes dos 14 anos, a lei reconhece o que a sociedade teima em negar — ela foi violentada, e tem o direito de não carregar essa violência no corpo.
Mas agora querem reescrever a lei. Querem apagar o que a justiça sedimentou em décadas de luta. Querem colocar o dogma acima da Constituição, a fé acima da proteção da infância, e o moralismo acima da vida. Chamam de “defesa da vida” o que, na prática, é a institucionalização da crueldade. Obrigar uma criança a gestar o fruto de um estupro é torturá-la duas vezes — é transformar o ventre de uma vítima em cárcere da própria dor.
Não se trata de ser a favor ou contra o aborto. Trata-se de ser a favor da vida — da vida das meninas, das suas infâncias, dos seus futuros. Nenhuma criança de 10, 11 ou 12 anos tem corpo ou alma preparados para parir. Proteger a infância é mandamento constitucional, mas também é gesto civilizatório. O que está em jogo não é moral, é humanidade.
O discurso religioso que tenta justificar tamanha violência é perigoso. Os mesmos que se autoproclamam defensores da vida são, muitas vezes, os que silenciam diante da pedofilia estrutural que corrói o país. Quando o Congresso se movimenta para restringir o aborto legal, não está protegendo a vida — está protegendo o agressor. Está punindo a vítima em nome da fé de outrem.
E os números, tão áridos quanto necessários, seguem a denunciar o abismo: se vinte e seis meninas dão à luz todos os dias, quantas outras engravidam e abortam sozinhas, escondidas, fora de qualquer estatística? A subnotificação é tão vasta que os dados oficiais soam quase serenos — mas apenas para quem nunca precisou defender uma criança de um Estado que insiste em chamá-la de mãe.
O Brasil não pode normalizar a gravidez infantil. Não pode chamar violência de destino, nem tortura de maternidade. Proteger essas meninas não é questão de opinião: é exigência ética, jurídica e humana. O aborto legal não é um privilégio; é o mínimo gesto de reparação diante de uma violência que não se apaga.
Deixem nossas meninas em paz. Deixem-nas brincar, sonhar, estudar. Deixem-nas crescer sem o peso do corpo de um estuprador dentro do ventre. Porque quem defende que uma criança leve adiante uma gestação fruto de estupro não luta pela vida — luta pelo controle. E quem se cala diante disso é cúmplice da violência que diz condenar.
Thaís Cremasco é advogada feminista, Presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Campinas, Conselheira Estadual da OAB/SP e especialista em Gênero e Saúde da Mulher pela Universidade de Stanford.
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.



