quarta-feira, 24/12/2025
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Deixem nossas meninas em paz!

Quando a infância é tratada como culpa e o estupro como destino, o país revela o abismo entre sua fé e sua humanidade.

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Por Thaís Cremasco

Todos os dias, em algum canto do Brasil, vinte e seis meninas com menos de catorze anos dão à luz. Vinte e seis infâncias interrompidas, vinte e seis corpos marcados por uma violência que o país insiste em disfarçar sob o eufemismo de “gravidez precoce”. Mas não há precocidade possível na barbárie. São meninas, não mães. São vítimas de estupro.

Esses números, que já parecem insuportáveis, escondem uma dor ainda maior: a do silêncio. Pesquisas revelam que o número de partos entre meninas de 10 a 13 anos é quase três vezes superior ao total de registros de violência sexual. A matemática do horror é simples — para cada estupro denunciado, há outros tantos soterrados sob o medo, a vergonha, a indiferença institucional. Uma nação que não protege suas crianças legitima o crime com o silêncio.

É nesse cenário que o Congresso Nacional se debruça sobre um projeto de decreto legislativo que tenta anular uma norma do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente — o Conanda — responsável por garantir atendimento humanizado e acesso ao aborto legal para meninas e mulheres vítimas de violência sexual. O que esse projeto pretende, em última instância, é negar a uma criança violentada o direito de interromper uma gestação que nasceu de um crime. É uma agressão travestida de lei. Um atentado à dignidade de quem já teve a infância violada.

A legislação brasileira é clara. O artigo 217-A do Código Penal não deixa espaço para ambiguidade: ter conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos é estupro de vulnerável. Não existe consentimento. Não existe namoro, nem “iniciação precoce”. Existe crime. E o artigo 128 assegura o direito ao aborto nos casos de estupro ou risco à vida da gestante. Quando uma menina engravida antes dos 14 anos, a lei reconhece o que a sociedade teima em negar — ela foi violentada, e tem o direito de não carregar essa violência no corpo.

Mas agora querem reescrever a lei. Querem apagar o que a justiça sedimentou em décadas de luta. Querem colocar o dogma acima da Constituição, a fé acima da proteção da infância, e o moralismo acima da vida. Chamam de “defesa da vida” o que, na prática, é a institucionalização da crueldade. Obrigar uma criança a gestar o fruto de um estupro é torturá-la duas vezes — é transformar o ventre de uma vítima em cárcere da própria dor.

Não se trata de ser a favor ou contra o aborto. Trata-se de ser a favor da vida — da vida das meninas, das suas infâncias, dos seus futuros. Nenhuma criança de 10, 11 ou 12 anos tem corpo ou alma preparados para parir. Proteger a infância é mandamento constitucional, mas também é gesto civilizatório. O que está em jogo não é moral, é humanidade.

O discurso religioso que tenta justificar tamanha violência é perigoso. Os mesmos que se autoproclamam defensores da vida são, muitas vezes, os que silenciam diante da pedofilia estrutural que corrói o país. Quando o Congresso se movimenta para restringir o aborto legal, não está protegendo a vida — está protegendo o agressor. Está punindo a vítima em nome da fé de outrem.

E os números, tão áridos quanto necessários, seguem a denunciar o abismo: se vinte e seis meninas dão à luz todos os dias, quantas outras engravidam e abortam sozinhas, escondidas, fora de qualquer estatística? A subnotificação é tão vasta que os dados oficiais soam quase serenos — mas apenas para quem nunca precisou defender uma criança de um Estado que insiste em chamá-la de mãe.

O Brasil não pode normalizar a gravidez infantil. Não pode chamar violência de destino, nem tortura de maternidade. Proteger essas meninas não é questão de opinião: é exigência ética, jurídica e humana. O aborto legal não é um privilégio; é o mínimo gesto de reparação diante de uma violência que não se apaga.

Deixem nossas meninas em paz. Deixem-nas brincar, sonhar, estudar. Deixem-nas crescer sem o peso do corpo de um estuprador dentro do ventre. Porque quem defende que uma criança leve adiante uma gestação fruto de estupro não luta pela vida — luta pelo controle. E quem se cala diante disso é cúmplice da violência que diz condenar.

 

Thaís Cremasco é advogada feminista, Presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Campinas, Conselheira Estadual da OAB/SP e especialista em Gênero e Saúde da Mulher pela Universidade de Stanford.


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

Rogério Bezerra
Rogério Bezerrahttps://gravatar.com/creatorloudly177c571905
Geógrafo, Mestre, Doutor e Pós-doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Foi Diretor de Pesquisa Aplicada da Fundacentro. Coordenador do Movimento Pela Ciência e Tecnologia Pública. Atua especialmente em temas relacionados à análise e avaliação de políticas públicas.

1 COMENTÁRIO

  1. Deveria ser proibida a saída de menores de 18 anos na rua após às 22h a nao ser que esteja acompanhada pelos pais ..mesmo assim deve se ter uma coerência devido a tanta hipocrisia….tudo começa no berço..no ensino dentro de casa …e a proteção dos pais …não é não e deve ser cumprido….e a proibição de Cel TB .. Instagram etc…tem tanta tecnologia…rastreia se tudo ..então o sistema visualiza é uma criança no Cel.. bloqueia e só é permitido com um adulto…mais uma parte da infância roubada …mas as crianças de hj em dia com 2 anos de idade já estão aprendendo dentro de casa a mostrar a bunda ..a danças vulgares a gritar a brigar e assim vai se eu for citar todas as coisas aqui vou ficar o resto da vida ….então o projeto deve ser sim proibido a gestação de crianças partir de tal idade ….mas tem que ser juntamente com um projeto de recuperação de famílias…de incentivo de aprender … incentivo de uma nova oportunidade no meio da sociedade….e muitas outras coisas …para que a criança que vive no meio de outras crianças tenha oportunidade de mudar de vida ….e outra coisa TB ..se deve ter uma posição da quantidade de mulheres sem freio pra ter filhos sem ao menos cuidar de um… Pq ai como fica essa criança…mais uma no mundo sem futuro….jogada em uma casa ..em outra ..podendo aí ser mal tratada ..podendo TB ser abusada ….e a mãe pegando auxílio…ou pensão pra ficar na candaia . E fazendo mais crianças sem futuro.. e tudo mais … São muitas coisas a ser discutida dentro desse tema .. sem mais obrigada

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