quarta-feira, 24/12/2025
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“Ele está morto politicamente”, uma crônica sobre os dias atuais

 

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O erro dos analistas não foi de cálculo, mas de leitura: ignoraram como o público reinterpreta a política a partir de seus próprios códigos culturais.

 

Por Rogério Bezerra da Silva

Durante meses, repetia-se a sentença com a segurança de quem anuncia o óbvio: “Ele está morto politicamente.”

A frase corria solta nas redações, entre poucos políticos desavisados, nas mesas de bar e nas timelines dos comentaristas de política que orbitam à esquerda. As pesquisas pareciam confirmar o veredito, e cada escândalo, cada palavra atravessada, cada corte de orçamento, cada privatização anunciada vinha embalado por uma mesma certeza: o experimento do ultraliberal não sobreviverá ao teste das urnas.

A rejeição apontada pelas pesquisas vinha sendo tratada como o prenúncio do fim. Os veículos de comunicação, à esquerda, pintaram o quadro de um governo acuado, desgastado, cercado por rejeição e denúncias de corrupção. Analistas falavam em “desidratação política”, em “fadiga do discurso antiestatal”, em “esgotamento precoce do outsider”. Ele havia chegado ao poder montado no discurso da antipolítica. Agora parecia ser devorado por ele próprio.

Mas a eleição chegou — e com ela, o desmentido.

Na noite das eleições, quando as urnas começaram a se abrir, o impossível foi tomando forma em números. O ultraliberalismo não apenas sobreviveu: venceu, ampliou bancadas e passou a ter ainda mais musculatura para negociar de igual para igual com os setores tradicionais do parlamento. Pai, irmão ou filho do liberalismo. O homem que a imprensa dizia estar politicamente morto saiu das urnas com o fôlego de quem acaba de renascer.

O que explica esse aparente paradoxo? Aqui entra a perspectiva de Jesús Martín-Barbero qundo mostra que não basta olhar para os meios como transmissores neutros de informações: é a mediación — a forma como o público recebe, interpreta e recontextualiza a mensagem no seu próprio espaço cultural — que determina o impacto real da política. Ou seja, as previsões de analistas, inclusive os de bar, falham não apenas por erro de cálculo, mas porque subestimam como o contexto cultural e a recepção popular moldam a interpretação dos atos dos políticos.

Os mercados, que vinham desconfiados, reagiram com euforia. O dólar subiu, investidores estrangeiros voltaram a acenar. A oposição, que apostara na implosão do governo, ficou atônita. E nas redes, o politico fortalecido não perdeu tempo: citou o evangelho libertário liberal, proclamou que “a verdade venceu o medo” e prometeu seguir com as reformas “contra tudo e contra todos”.

A crônica política latino-americana conhece esse roteiro. Quando ele foi eleito, muitos o tomaram por uma anomalia passageira, um raio isolado num céu já saturado de populismos. Anos de mandato, a esquerda ainda o tratava como uma nota dissonante, fadada a desaparecer no próximo compasso. Mas o público — ou parte significativa dele — vinha ouvindo outra música, interpretando suas ações dentro de suas próprias experiências, referências culturais e expectativas sociais.

O povo não nega os erros, as contradições e o impacto social das medidas econômicas adotadas por ele. Há filas, há descontentamento, há desmonte de políticas públicas, há venda de bens públicos. Mas ele transformou rejeição em combustível político — fez da raiva do povo um motor de reafirmação ideológica. Onde viram desgaste, ele construiu narrativa. Onde apontaram isolamento, ele viu lealdade. E isso, segundo Martín-Barbero, é o que faz a política — e sua recepção — ser tão imprevisível: a mensagem circula, mas é reinterpretada de acordo com códigos culturais, práticas sociais e experiências individuais.

As manchetes da véspera — “Desgaste recorde”, “Derrota a caminho”, “O fim do ultraliberalismo” — soaram, no dia seguinte, como epitáfios precoces. A política, afinal, tem o hábito de zombar dos diagnósticos desesperados.

E é possível que os mesmos analistas revisem suas teses, encontrem nuances, falem de “vitória com ressalvas” ou “sobrevida momentânea”. Mas o fato simples permanece: para o povo, ele não estava morto.

 

 

 

Rogério Bezerra da Silva é Geógrafo, Mestre e Doutor em Política Científica e Tecnológica. Especializado na análise da relação estado-sociedade.

 

 


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

Rogério Bezerra
Rogério Bezerrahttps://gravatar.com/creatorloudly177c571905
Geógrafo, Mestre, Doutor e Pós-doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Foi Diretor de Pesquisa Aplicada da Fundacentro. Coordenador do Movimento Pela Ciência e Tecnologia Pública. Atua especialmente em temas relacionados à análise e avaliação de políticas públicas.

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