Notificação da AGU contra a ABRASME, após críticas às comunidades terapêuticas, gera reação nacional e reacende o debate sobre liberdade de expressão, direitos humanos e os rumos da política de saúde mental no Brasil.
Por Rogério Bezerra da Silva
Uma notificação extrajudicial da Advocacia-Geral da União (AGU) contra a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) provocou forte reação de pesquisadores, trabalhadores do SUS, militantes da luta antimanicomial e entidades de direitos humanos. A denúncia deu origem a uma petição pública que pede apoio nacional à ABRASME e repudia o que é visto como um ato de intimidação institucional contra uma organização histórica da saúde mental brasileira.
O que motivou a petição
De acordo com o texto da moção, em 3 de dezembro a ABRASME tomou conhecimento de uma notificação extrajudicial impetrada pela AGU. A ação foi motivada pela divulgação, pela associação, de imagens e de uma nota de posicionamento que criticava a conduta de servidores do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS).
Esses servidores, segundo a denúncia, impediram a entrada de manifestantes contrários às comunidades terapêuticas na Universidade de São Paulo, durante um evento sobre cuidado de mulheres em comunidades terapêuticas, realizado nos dias 6 e 7 de outubro de 2025.
Para a ABRASME e para diversos profissionais da saúde mental, a notificação da AGU representa um grave precedente de repressão à crítica pública e uma tentativa de silenciar setores que historicamente fiscalizam violações de direitos e defendem políticas públicas baseadas em evidências.
Objetivo da petição
A petição — “Moção de Apoio à ABRASME por intimidação do AGU/MDS” disponível em:
— tem como objetivos centrais:
- Demonstrar apoio público à ABRASME, entidade reconhecida por sua atuação na defesa da Reforma Psiquiátrica e dos direitos humanos.
- Repudiar a notificação extrajudicial da AGU, considerada um ataque à liberdade de expressão e ao controle social.
- Denunciar práticas de coerção e tentativa de contenção de manifestações críticas às comunidades terapêuticas.
- Reafirmar a defesa de uma política pública de saúde mental baseada na RAPS e na luta antimanicomial, em oposição ao financiamento e expansão das comunidades terapêuticas.
Silenciar o debate público é retroceder à lógica manicomial
O psicólogo Rogério Giannini, ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e pesquisador da área, tem reiteradamente criticado a retomada de práticas de exclusão e internação compulsória sob novas nomenclaturas. Como dito por ele:
“Impedir manifestações críticas é uma forma de tentar blindar um modelo que possui um histórico marcado por violações de direitos humanos. A defesa das comunidades terapêuticas, muitas vezes, ressuscita a velha lógica da ‘cura pela disciplina’, totalmente incompatível com os princípios da Reforma Psiquiátrica. E é inaceitável que o Estado cerceie organizações da sociedade civil por exercerem seu papel de controle social de maneira legítima.”
Giannini afirma ainda que:
“Quando o Estado tenta silenciar a crítica, ele não protege políticas públicas — ele protege práticas de violência.”
O pano de fundo: o embate entre a RAPS e o retorno das práticas de exclusão
Gianini destaca que o episódio evidencia um movimento nacional de reabilitação das comunidades terapêuticas, impulsionado por setores religiosos e aliados parlamentares, que buscam legitimar práticas já denunciadas por:
- violação de direitos;
- confinamento e abstinência forçada;
- ausência de equipes técnicas qualificadas;
- ausência de integração com a rede pública de saúde.
Para movimentos da Reforma Psiquiátrica, a tentativa de criminalizar entidades como a ABRASME é uma forma de intimidar opositores dessas políticas regressivas.
Comunidades terapèuticas não integram o modelo sanitário do SUS
Estudos publicados por Marcelo Kimati, médico psiquiatra, professor universitário e atual Diretor do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (DESMAD/MS), demonstram que não há sustentação científica para que comunidades terapêuticas sejam tratadas como política pública de saúde mental. Em seus estudos, o professor Kimati destaca que:
- as comunidades terapêuticas não integram a lógica sanitária da RAPS;
- não há evidência de eficácia que justifique financiamento público massivo;
- sua expansão não se deu pela ausência de alternativas, mas por desvios de finalidade e interesses políticos e econômicos, criando distorções no uso de recursos públicos.
O professor Kimati tem também, em seus estudos e pesquisas, chamado atenção para o fato de que a defesa das comunidades terapêuticas costuma se apoiar em narrativas morais ou religiosas, e não em critérios técnicos ou clínicos.
Assine a petição em defesa da ABRASME e da liberdade de crítica em saúde mental: clique aqui
Rogério Bezerra da Silva é Geógrado, Mestre e Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Foi Diretor de Pesquisa Aplicada da Fundacentro (2023-2024).
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