quinta-feira, 19/06/2025
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Violência digital e a sociedade calada: mais um caso de meninas expostas, agora em Piracicaba

A historiadora e psicanalista Vanessa Guadagnini Prates alerta: desde 2024, o Brasil vem enfrentando um preocupante avanço da violência digital contra crianças e adolescentes
Seminário Desafios e estratégias no combate à violência sexual infantil na internet - Fotos: Eric Bezerra/MPMG
Seminário Desafios e estratégias no combate à violência sexual infantil na internet – Fotos: Eric Bezerra/MPMG

Por Vanessa Guadagnini Prates

Piracicaba, no interior de São Paulo, vem sendo centro de um intenso debate sobre violência de gênero e crime cibernético. Segundo investigações da Polícia Civil, algumas meninas, estudantes de uma escola da cidade, foram vítimas da chamada “pornografia sintética”, prática em que imagens reais são manipuladas digitalmente para simular nudez ou atos sexuais. As vítimas só descobriram a existência das montagens após os arquivos serem compartilhados em grupos de WhatsApp e redes sociais, ampliando ainda mais o impacto emocional e psicológico da violência.

Desde 2024, o Brasil vem enfrentando um preocupante avanço da violência digital contra crianças e adolescentes.

O canal Disque 100 registrou 2.416 denúncias ao longo de 2024 sobre violência online contra menores — totalizando 10.357 violações — e apenas entre janeiro e março de 2025 já recebeu 570 denúncias, equivalentes a 2.553 ocorrências no período.

Paralelamente, estudo do ChildFund Brasil revelou que 54% dos adolescentes entre 13 e 18 anos — cerca de 9,2 milhões de jovens — vivenciaram violência sexual na internet, com incursões de estranhos via WhatsApp e Telegram em 55% dos casos.

Adicionalmente, a pesquisa TIC Kids Online 2024 indicou que 30% dos menores já tiveram contato virtual com desconhecidos, enquanto 38% relataram assédio em interações e 24% enfrentaram ameaças de vazamento de imagens íntimas.

Um destaque alarmante: entre meninas e jovens mulheres brasileiras, 77% relataram ter sofrido assédio online — bem acima da média global de 58% — posicionando o país entre os mais afetados no mundo neste tipo de violência de gênero.

Esses dados expõem uma realidade alarmante: a naturalização da violência digital, fortalecida por discursos de ódio e cyberbullying.

O caso ocorrido recentemente em Piracicaba, onde estudantes utilizaram inteligência artificial para criar e divulgar imagens falsas de nudez de colegas, não é apenas um episódio chocante, é um grito de alerta. É um retrato cruel de como a violência de gênero, ao se aliar à tecnologia, adquire formas insidiosas e se espalha com uma rapidez assustadora.

Essa situação não é apenas um crime, é uma ferida social aberta. Meninas de 12 e 13 anos tiveram seus rostos inseridos em corpos digitais, sendo expostas como se tivessem se despido voluntariamente.

Esse caso não é isolado. Ele é o reflexo de tudo o que aceitamos, silenciamos ou normalizamos. Uma violência de gênero disfarçada de brincadeira, amplificada por tecnologias que chegaram às mãos de crianças e adolescentes — mas sem que houvesse qualquer discussão ética sobre seus usos e limites.

“Foi só uma piada”: o disfarce do machismo

A ideia de que tudo é meme ou zoeira é uma armadilha. Quem compartilha uma imagem dessas, mesmo que “de brincadeira”, participa ativamente da humilhação. A risada diante do sofrimento alheio alimenta a cultura que expõe, que destrói e que silencia.

“Ah, mas são só meninos”. Essa frase é um problema. Desde cedo, muitos garotos aprendem que podem tudo — e que as meninas que precisam “se dar ao respeito”. Quando os pais ignoram ou minimizam atitudes abusivas, estão reforçando exatamente a cultura que depois fingem condenar. A casa é o primeiro lugar onde se aprende (ou se desaprende) o que é respeito.

Não adianta culpar apenas a escola. A criança que reproduz violência online não criou isso sozinha. Famílias não podem se esconder atrás do discurso da imaturidade.

Ensinar mais que conteúdo: precisa formar gente

Ainda tratamos a tecnologia como uma ferramenta neutra. Mas, ela nunca é neutra quando carrega dentro de si os mesmos preconceitos que alimentam nossa sociedade. A escola precisa urgentemente deixar de ser um espaço que só ensina códigos e cálculos, e começar a discutir, de forma ampla e profunda, temas como consentimento, respeito, empatia e ética digital. Isso não é “a mais”, isso é básico. Fingir que essas questões são responsabilidades apenas das famílias é um desvio de função.

A tecnologia deve ser problematizada pela escola. Quando a escola silencia diante do cyberbullying, do assédio, da exposição de meninas, ela não está sendo neutra: está sendo cúmplice.

Deve ser problematizado o uso da tecnologia no conteúdo escolar. Afinal, não podemos achar normal quando corpos das mulheres se tornam piada, conteúdo, ameaça ou punição por meio do usos das tecnologias digitais.

O Estado precisa sair do lugar da reação e ocupar o da prevenção

Esperar o trauma acontecer para agir já é inaceitável, a hora de agir é agora. E as medidas são urgentes:

  • Regulamentar plataformas digitais, exigindo respostas rápidas e eficazes para remoção de conteúdos não consensuais;
  • Incluir, de verdade, a discussão de gênero e ética digital nos currículos escolares;
  • Amparar as vítimas, garantindo atendimento psicológico e suporte contínuo;
  • E sim, responsabilizar legalmente quem comete e quem permite – inclusive pais e responsáveis, quando for o caso.

É fácil se indignar. Difícil é encarar o fato de que falhamos como sociedade, como escola, como família, como Estado.

Justiça é necessária, porém, não é suficiente. Entrar com processo é, sim, uma parte da solução. Mas, o que realmente precisamos é: mudança cultural. Uma cultura que impeça que meninas cresçam com medo de seus próprios corpos, de suas vozes ou de circularem por espaços – sejam eles físicos ou digitais.

O cenário reforça a urgência de políticas públicas robustas, educação digital estruturada e canais eficazes de denúncia e acolhimento para proteger crianças e adolescentes nesse ambiente híbrido e vulnerável.

O caso ocorrido em Piracicana pode, e deve, ser um divisor de águas. Não por discursos vazios de proteção, mas porque está mais do que claro: estamos falhando. E continuar falhando já não é mais uma opção.

Vanessa Prates - Foto: Acervo pessoal
Foto: Acervo pessoal

Vanessa Guadagnini Prates é historiadora e psicanalista, atua no acolhimento de mulheres em situação de violência.


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

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