terça-feira, 15/07/2025
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Imigrantes espanhóis em São Paulo: cotidiano de lutas e desafios no início do século 20

Livro de Isaías Dale revela o panorama da comunidade espanhola em São Paulo a partir do jornal Diário Espanhol, entre 1912 e 1918.
Trabalhadores durante a greve geral de 1917 em São Paulo
Trabalhadores durante a greve geral de 1917 em São Paulo

Por Paulo Salvador

A imigração italiana domina a história da formação de São Paulo, cidade e estado, da industrialização e das fazendas de café. Os oriundi ocupam a cena em parte pelo domínio e hegemonia cultural, mas espanhóis e portugueses chegaram aqui pari passu.

Os números oficiais de entradas no Brasil colocam os espanhóis em segundo lugar nos primeiros vinte anos do século passado, embora muitos não registrados eram jovens fugidos do alistamento militar da guerra que a Espanha mantinha com o Marrocos. Dados oficiais dão que em 1913 ingressaram no Brasil 33 mil espanhóis, 24 mil italianos e 40 mil portugueses. Há um cálculo que nas duas décadas chegaram 700 mil hispânicos.

Como chegaram, onde moravam, onde trabalhavam e como viviam? O descendente de espanhol e jornalista Isaías Dale Nogare Liebana, por deveres do ofício revisitava as mobilizações proletárias do início do século, que culminou com a greve geral de 1917, movimento que os espanhóis estiveram na liderança. Foi nela que houve o assassinato do jovem José Martinez, espanhol de 21 anos, no dia 9 de julho pela polícia.

A Câmara Municipal de São Paulo aprovou em 2017 essa data como o dia da luta operária.
Isaías escreveu o livro 100 anos da Greve Geral – 1917-2017, passado ou futuro? E adotou o período para estudo em mestrado de História pela USP (Universidade de São Paulo). O espírito jornalista e historiador levou-o a pesquisar as páginas do Diário Espanhol, publicado em São Paulo. Com foco entre 1912 e 1918. Isaías traça um vigoroso panorama do cotidiano dessa colônia em terras paulistas e publicou o livro Diário Espanhol, entre as guerras e a gripe (264 páginas, Editora História da Gente).

100 anos da Greve Geral – 1917-2017, passado ou futuro?, de Isaías Dale - Foto: reprodução
100 anos da Greve Geral – 1917-2017, passado ou futuro?, de Isaías Dale – Foto: reprodução

O Diário tinha uma circulação consistente, diz Isaías, sustentada por uma rede de distribuição espalhada pelo interior do território paulista, chegou anunciar tiragem de 7,5 mil exemplares quando o robusto jornal O Estado de São Paulo declarava imprimir 35 mil exemplares. Tinha em seus melhores momentos 8 páginas, dirigido por Eiras Garcia, empresário que antes tivera um hotel e atuava contra o que os futuros historiadores chamariam de invisibilidade da colônia. Uma tarefa bem difícil se considerar que havia 50% de analfabetos e uma comunidade que estava entre as mais empobrecidas na cidade de São Paulo.

Eiras era simpático ao monarquista espanhol e que por força do jornalismo foi se adaptando às demandas. Fazia do jornal o porta-voz das associações de ajuda mútua, tratava as reivindicações proletárias com respeito e dava voz aos sindicatos e movimentos daqui e da Espanha, se equilibrava entre a crítica e o elogio às autoridades públicas e ao empresariado, sonhava ser o representante do café brasileiro na Europa, tratou com desenvoltura a guerra europeia, entre Alemanha e a união Rússia, França e Reino Unido, em que a Espanha declarou-se neutra. Eiras simpatizava com o desenvolvimento econômico da Alemanha e muitas vezes expressava no jornal essa simpatia. Depois veio a epidemia da gripe tachada de espanhola e chega à vitória da social-democracia na Alemanha, sobre a quem Eiras depositou muita esperança. Eiras nunca perdeu o ânimo com o Brasil como sendo a terra das oportunidades e que os espanhóis aqui faziam a vida.

É nesse bolo de ideias que o dia a dia dos imigrantes espanhóis é destaque nas páginas do Diário e do livro. O primeiro deles é de 31 de março de 1912 com o espancamento de imigrantes pelo fazendeiro e seus capatazes em fazenda em Atibaia, a 61 km da capital. Os espanhóis eram tratados no que agora se chama regime análogo à escravidão – em linguagem popular, os novos escravizados – que ao tentarem fugir foram agredidos.

O livro traz comparativos de salários e custo de vida, preços de alimentos e de moradia, aliás nas piores condições. Há relato do destino das famílias e principalmente as separações depois das chegadas. Contundente é o tratamento aos órgãos públicos que cuidavam da arregimentação nos locais de origem até a colocação nas fazendas. O negócio logo foi privatizado com um jogo de interesses entre a classe política, governo e empresários.

Nesse ritmo vem a narrativa do acidente em julho de 2014 na construção da Catedral da Sé onde uma parede de terra desmoronou e soterrou 24 operários, matando 4 (dois eram espanhóis) e ferindo outros 8. Diferente de outros jornais, o Diário tratou o acidente questionando se era resultado da exploração. Como de hábito inicia uma campanha de arrecadação de fundos para apoiar viúvas e órfãos e divulga versões técnicas para o acontecido e as manifestações no cemitério onde os espanhóis anarquistas enfrentaram a Igreja e as autoridades.

A ação policial contra espanhóis aparece em vários momentos como perseguição e preconceito. O que inclui também a ação policial contra as agitações operárias que culminaram com a greve geral de 1917. Nesse período a guerra leva à escassez de alimentos e aumento da carestia. “Em 1917, uma paralisação de operários no Cotonifício Crespi, na Mooca, bairro de São Paulo. Nova digressão – anos depois é nessa tecelagem que surge o time Juventudes F.C. Parecia ser mais uma greve das tantas que eclodiram depois de 1915. A greve se espalhou pela capital e cidades do interior envolvendo vários segmentos. Isaías destaca a organização das donas de casa e surgimento de lideranças entre as mulheres operárias. A greve é uma história a parte como fez Isaías com um livro próprio dela.

O ano seguinte é marcado pela epidemia da gripe influenza tachada de espanhola, mas que teve origem décadas antes na Europa, chegando ao Brasil pelo navio inglês Demerara. Preocupados com a guerra na Europa, as notícias da gripe eram censuradas. O Diário erra ao noticiar que seria um resfriadinho, que estava terminando, o que não ocorreu, causando caos na cidade por falta de atendimento médico, hospitais e medicamentos. As pessoas morriam na rua. A epidemia da Covid-19 foi muito similar, porém em 1918 as condições foram muito mais graves. Vale lembrar que as pessoas desfaleciam nas ruas por excesso de ingestão de purgantes. Como a Covid-19, a gripe influenza se esvaiu quando passou a “contaminação de rebanho”. Estima-se que entre 1918 e 1920 morreram entre 17 milhões e 50 milhões de pessoas pelo mundo. Estudos recentes apontam que as precárias condições de vida e subnutrição propiciaram alta mortalidade.

Influenza nas ruas e guerra na Europa com todos os reflexos no cotidiano das famílias. Com a vitória da social-democracia na Alemanha na recém iniciada república (Weimar), Eiras Garcia joga esperança de que os socialistas pudessem resolver os problemas e conflitos na humanidade. Eiras morre no dia 23 de dezembro de 1921 e seu filho Eiras Garcia Filho mantem o jornal até 2025, quando eclodiam os movimentos tenentistas.

De todo esse período, Isaías conclui que a luta pela sobrevivência e tentativa de adaptação a um ambiente novo – vindo de um país que não desfrutava de prestígio para um outro pais que pouco oferecia em termos de acolhimento e proteção. A orientadora do mestrado, Wilma Peres Costa escreve “o jornalista nos brinda com sua escrita límpida e sedutora”. Já a editora Solange do Espírito Santo diz que o livro mostra o drama pela sobrevivência de famílias espanholas na capital e nos cafezais do interior do estado”. E completa: “a fluência da escrita nem faz o leitor perceber que está diante de um trabalho acadêmico, mérito de um contador de histórias”.

Paulo Salvador - Foto: Acervo pessoal
Foto: Acervo pessoal

Paulo Salvador é jornalista e presidente da TVT News.

Legenda da imagem complementar empilhada (temporário)

 


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

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