segunda-feira, 18/08/2025
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O que Trump pretende ao atacar o Mais Médicos e o SUS?

Soberania sanitária, isto é, a capacidade de um país garantir saúde à sua população sem dependência externa é tão vital quanto a soberania energética ou alimentar
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Fabio Alves

No dia 13 de agosto de 2025, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, anunciou a revogação dos vistos de “vários membros” do governo brasileiro, com foco especial em gestores e ex-integrantes do programa Mais Médicos, além de ex-funcionários da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e familiares. Segundo Rubio, a medida estaria relacionada ao suposto envolvimento desses profissionais em um “esquema de exportação de trabalho forçado” de médicos cubanos, beneficiando economicamente o regime de Havana e violando normas internacionais.

Por trás dessa elaboração, porém, há elementos que não podem ser ignorados: o contexto de tensões diplomáticas entre os governos Lula e Trump/Rubio, a disputa por influência na América Latina e o ataque a um dos maiores programas de inclusão social da história recente, o Sistema Único de Saúde (SUS) e sua política de provimento emergencial de médicos para regiões remotas e vulneráveis.

O Mais Médicos: inclusão social em escala continental

Criado em 2013, o Mais Médicos respondeu a um déficit histórico de profissionais de saúde em áreas rurais, periferias urbanas e localidades indígenas. Em pouco tempo, levou atendimento médico a mais de 63 milhões de brasileiros, com forte presença de profissionais estrangeiros — em especial cubanos —, cuja experiência em medicina comunitária e atenção primária era reconhecida internacionalmente

Estudos acadêmicos apontam que a presença desses médicos reduziu desigualdades regionais no acesso à saúde, ampliou a cobertura vacinal e fortaleceu a Estratégia Saúde da Família (ESF). Para populações antes invisibilizadas, a chegada do Mais Médicos significou, literalmente, a presença do Estado brasileiro onde antes só havia ausência.

A ofensiva diplomática dos EUA

A ação de Rubio não se dá no vazio. Desde o início do terceiro mandato de Lula, a política externa brasileira vem reafirmando autonomia estratégica, fortalecendo relações com países do Sul Global e retomando laços de cooperação Sul-Sul. Essa postura colide com a doutrina de política externa dos EUA, que busca conter a presença e influência de Cuba na região.

Ao atingir diretamente quadros e ex-quadros do Mais Médicos e da OPAS, a medida tem os possíveis efeitos políticos:
1. enfraquecer a imagem internacional do Brasil como liderança em cooperação em saúde;
2. criar instabilidade social interna, atacando políticas públicas anti-liberais simbólicas e amplamente reconhecidas por sua efetividade social.

SUS e soberania: um porquê do ataque

O SUS não é apenas um sistema de saúde … é o maior programa de inclusão social do Brasil, sustentado pelo princípio constitucional de saúde como direito de todos e dever do Estado. Programas como o Mais Médicos operam como infraestruturas de soberania e governabilidade social e representação política do campo progressista, capazes de garantir presença estatal, vigilância em saúde e integração territorial.

Ao enfraquecer um programa desse porte, enfraquece-se também a capacidade do Brasil de responder de forma independente a emergências sanitárias, abrir frentes de pesquisa em saúde pública e exercer sua reputação por meio da cooperação internacional.

Não se pode esquecer que o SUS também carrega uma forte tendência de enfrentar o modelo neoliberal redesenhando valores e ideais da defesa de direitos humanos, democracia, sustentabilidade, igualdade de gênero etc. No plano da diplomacia, a atuação construtiva com organismos internacionais, ajuda humanitária, mediação de conflitos, cooperação científica e educacional. O SUS incorpora uma reputação e imagem internacional de confiança gerada por estabilidade política, inovação, qualidade de vida e ética nas relações externas. O SUS significa influência pela a sua atuação estratégica e credibilidade no enfrentamento das mazelas e desigualdades sociais, conquistando “corações e mentes” em vez de guerra exclusão e morte.

A falsa polêmica do “trabalho forçado”

A acusação de “trabalho forçado” contra médicos cubanos não é nova e vem sendo usada há anos como justificativa para sanções. No entanto, relatórios de organismos multilaterais apontam que tais missões integram um modelo de cooperação pactuado entre Estados soberanos, com ampla aceitação social e resultados comprovados.

Ignorar esses elementos é reproduzir um discurso que, sob o manto da defesa de direitos humanos, serve de instrumento para deslegitimar experiências de saúde pública que escapam à lógica mercantil.

O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirmou que o Mais Médicos “sobrevive a qualquer ataque injustificável” e reforçou que “saúde e soberania não se negociam”. Os Movimentos sociais, entidades de saúde e associações médicas progressistas têm denunciado a ação dos EUA como um ataque frontal à política pública brasileira e à própria ideia de cooperação internacional solidária.

Conclusão: saúde como campo de disputa

O episódio revela como, no cenário geopolítico contemporâneo, a saúde pública se converte em campo de disputa estratégica. A soberania sanitária, isto é, a capacidade de um país garantir saúde à sua população sem dependência externa é tão vital quanto a soberania energética ou alimentar.

Defender o Mais Médicos é defender o SUS. E defender o SUS é defender o Brasil. Quando um programa de saúde é atacado por interesses externos, não se trata apenas de uma questão de política pública, trata-se de afirmar a autonomia, a dignidade e a soberania nacional.

Fábio Alves - Foto: acervo pessoal
Fabio Alves – Foto: acervo pessoal

Fabio Alves é médico e professor da Unicamp.


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

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1 COMENTÁRIO

  1. Desde 1960 os USA impuseram um embargo a Cuba. Fui vitima do embargo quando, então Diretor do INCQS/Fiocruz, comprei vacinas cubanas meningo BC. Tive que fazer um “escambo”: depositei USD 110 milhões num banco alemão, usando a Interbras/Petrobras. Usava essa grana para comprar frangos da Sadia e cabos da Pirele. O escambo era: trocar vacinas por frangos e cabos !!

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