Em um recorte sensível entre versos e memórias, surge a figura de Hu Xudong, poeta, ensaísta e professor chinês falecido em 2021 aos 47 anos, que, entre seus feitos, dedicou-se apaixonadamente à construção de um diálogo poético entre culturas distintas. Como vice-diretor do Centro de Cultura Brasileira da Universidade de Pequim, soube articular as línguas e literaturas de Brasil e China em sua sala de aula e em seus poemas.
“Cai um raio e o Brasil não é mais o Brasil. O Brasil se vende ao trovão. Os raios, um após o outro, caem. Os Brasis são rachados, um após o outro. Entre os Brasis você desapareceu.”
Estrofe de “Cai um raio”, publicado na revista Opiniões há sete anos, nos possibilita compreender a grandiosidade de seu autor, especialmente quando seus versos no ajudam a conhecermos a nós mesmos.
Sete de setembro. As ruas se enchem de cores, as crianças e jovens desfilam com bandeiras nas fanfarras, há no ar o cheiro da pátria, no chão o brilho dos sapatos lustrados, nas mãos bumbos e trompas irrompem com brutalidade.
A festa, projetada para ecoar as vozes bem lá no passado rebeladas. Por elas, proclamada: independência ou morte! E a Nação nascia de um grito à beira do Rio. Um grito que pediu liberdade.
Mas, atenção, neste Sete de Setembro, no mesmo território em que está localizado o Rio, músicas e bandeiras podem ser usadas para amplificar ainda mais o som de um trovão vindo de não muito longe. Não é a trovoada de chuva que anuncia fertilidade; é um trovão que, assim como furacões, pode ser chamado de Publicano, porque resolveu querer meter pavor elevando tarifas em proporções descabidas.
E, para espanto da Nação, há quem bata palmas para esse trovão. Há governador que quer se submeter a Nação ao estrangeiro, como se isso fosse destino natural de um país tropical. Pior ainda: há governador que embarca na ousadia de concordar com ataques à própria soberania de sua Nação. Como se a nossa soberania, proclamada há exatos 203, fosse mercadoria em liquidação.
“O Brasil se vende ao trovão.” Verso simples, mas que ressoa como verdade. Porque o trovão é barulho de fora, mas a venda acontece aqui dentro. Venda feita por quem se diz fazer parte da Nação, mas que serve ao opressor que habita em terras não tão distantes.
Sete de setembro é bandeira na janela, é verde e amarelo no coração. Mas é também essa contradição: alguns comemoram a independência com o mesmo entusiasmo com que aceitam a dependência. Para esses, o grito ecoado faz mais de dois séculos deveria ter sido calado. São os que cantam o Hino enquanto abrem mão da voz.
Talvez, quem sabe, o verdadeiro grito de independência ainda não tenha acontecido. Talvez o Ipiranga esteja à espera de novos ouvidos, de novas margens, de novos brados. Porque independência não se herda, não se arquiva em ata — se vive, se luta, se afirma todos os dias.
E enquanto o trovão ecoa lá fora e aqui dentro se dobram cabeças, resta-nos a força do que queremos ser: um país que não se vende, um povo que não se curva, uma bandeira que não se cala. Entre os Brasis que possam vir, que não seja o de nossa liberdade o que venha a desaparecer.
Mais do que uma travessia estética, a poesia de Hu Xudong revela como a literatura é força política e cultural. Nesse terreno, a palavra escrita abre espaços onde governos não chegam, permitindo que cidadãos e cidadãs de distintas nações se descubram com solidariedades capazes de se enxergar nos versos e narrativas uns dos outros.
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.