quarta-feira, 1/10/2025
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Negacionismo científico e crise institucional: o desafio da democracia

O presidente da Adusp, Márcio Moretto Ribeiro discute a deslegitimação do conhecimento e a polarização política que corroem as bases da convivência democrática
Seminário na Adunicamp discutiu o negacionismo científico. Foto: Bruno Gusikuda
Seminário na Adunicamp discutiu o negacionismo científico. Foto: Bruno Gusikuda

Por Márcio Moretto Ribeiro

Estive na semana passada na Adunicamp participando de um debate sobre negacionismo científico. O tema está no centro das nossas urgências atuais. Ainda vivemos as consequências de um governo que adotou uma postura deliberadamente negacionista em relação às vacinas contra a Covid-19, postura que resultou em centenas de milhares de mortes evitáveis e que até hoje não foi devidamente julgada. No cenário internacional, vimos também um governo nos Estados Unidos disseminar desinformação grotesca, como a absurda associação entre o uso de paracetamol e o autismo. E, mais perto de nós, testemunhamos a extrema direita atacando a FFLCH e outras universidades públicas, muitas vezes em busca de autopromoção de influenciadores com pretensões eleitorais. São ataques que não visam ao debate de ideias, mas à exploração do conflito como ativo político.

O que estamos vivendo é uma crise mais ampla de deslegitimação das instituições. A política representativa já não desperta confiança, a mídia perdeu o prestígio que a colocava como mediadora legítima do debate público e até a ciência passou a ser vista com desconfiança fora de seus espaços especializados. Esse descrédito não se expressa de uma única forma, mas aparece em diferentes frentes: no populismo, que mobiliza o povo contra as elites; na polarização, que divide a sociedade em campos inconciliáveis; e também no negacionismo, que transforma o questionamento legítimo em descrédito sistemático do conhecimento científico.

Esse processo de deslegitimação das instituições aparece com clareza no debate climático. Durante muito tempo se acreditou que a resistência ao consenso científico sobre o aquecimento global resultava de falta de informação ou de incapacidade de compreender os dados. Foi nesse contexto que Kahan e colaboradores publicaram, em 2012, um estudo pioneiro mostrando o contrário: as pessoas mais instruídas e com maior capacidade de raciocínio numérico não eram as que mais aceitavam a gravidade das mudanças climáticas, mas justamente as mais polarizadas. Isso revelou que o negacionismo climático não é fruto de ignorância, mas de identidades políticas e culturais que moldam a forma como os fatos científicos são interpretados.

Se o negacionismo é, antes de tudo, um fenômeno político, faz sentido interpretá-lo dentro da lógica populista que organiza boa parte da extrema direita contemporânea. Não se trata de um simples déficit de informação ou de um erro cognitivo, mas de uma estratégia discursiva que opõe “o povo comum” às elites científicas, acadêmicas e institucionais. Essa lógica populista permite transformar a rejeição a consensos técnicos em sinal de identidade política e em arma contra instituições vistas como distantes ou hostis. O negacionismo, assim, não é apenas um ruído no debate público: é parte de uma forma de articulação populista que reorganiza a relação entre ciência, política e sociedade.

É nesse ponto que a leitura de Laclau ajuda a compreender a contradição do populismo. De um lado, ele tem uma dimensão democratizante: ao articular demandas dispersas e dar voz a novos atores, desafia instituições estabelecidas e cria arranjos inéditos para a cena política. Nesse sentido, ele expande a democracia, ao abrir espaço para sujeitos coletivos antes invisibilizados. Mas, de outro lado, o mesmo gesto que democratiza pode também corroer a legitimidade institucional. Quando a crítica se converte em deslegitimação generalizada, o populismo fragiliza as estruturas que tornam possível a convivência democrática, com consequências deletérias que vão da erosão dos freios e contrapesos à perda de confiança social nas próprias regras do jogo.

Algo semelhante acontece no terreno científico. O negacionismo pode ser lido como a expressão de um desejo de participar do debate sobre a produção de conhecimento, como se mais atores quisessem tomar parte em uma conversa que antes parecia restrita a especialistas. Essa abertura poderia, em tese, enriquecer o espaço público e tornar a ciência mais permeável ao escrutínio social. No entanto, essa entrada se dá frequentemente pela via da deslegitimação: em vez de disputar interpretações ou propor evidências alternativas dentro das regras do jogo científico, o negacionismo ataca as próprias instituições que sustentam a credibilidade do saber. O resultado é paradoxal: amplia-se a presença social no debate, mas ao custo de corroer as bases que permitem que ele exista de forma coletiva e confiável.

O caso dos ataques à FFLCH ilustra bem essa dinâmica. Existe um desejo legítimo, por parte de setores conservadores da sociedade, de que suas ideias sejam reconhecidas e debatidas de forma séria nas universidades públicas. Esse desejo poderia enriquecer o espaço acadêmico, ampliando a pluralidade e fortalecendo o caráter público da universidade. No entanto, ele tem se manifestado por meio de estratégias violentas e de campanhas que visam não à participação no debate, mas à deslegitimação do próprio espaço plural em que o debate acontece. Em vez de propor argumentos e disputar narrativas dentro das regras acadêmicas, o que se vê é a tentativa de transformar a universidade em inimiga, corroendo sua credibilidade social e fragilizando uma das instituições mais importantes da vida democrática.

O desafio que se coloca para as universidades, e que no fundo é o desafio das instituições como um todo, é encontrar um equilíbrio delicado. De um lado, é preciso abrir espaço para novas vozes, inclusive as conservadoras, que demandam participar do debate público. De outro, é indispensável preservar a legitimidade das instituições sem as quais não há democracia, saúde pública ou vida coletiva possível. As instituições devem ser questionadas e desafiadas, e esse é um componente essencial do espírito crítico, mas a crítica não pode se converter em destruição. Quando o preço do questionamento é a perda de milhares de vidas em uma epidemia, ou o descrédito das universidades enquanto espaços plurais, não estamos diante de uma ampliação democrática, mas de um ataque às próprias condições que tornam a democracia viável.

Márcio Moretto Ribeiro. Foto: Adusp
Foto: Adusp

Márcio Moretto Ribeiro é presidente da Adusp (Associação de Docentes da Universidade de São Paulo). É graduado em Ciências Moleculares e doutor em Ciências da Computação.

 

 

 


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

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Radar Democrático é um portal de notícias focado no estado de São Paulo. Valorizamos a democracia, a pluralidade de ideia, a diversidade étnica e cultural, e os direitos humanos. Acreditamos na mobilização e organização da população como fundamentais para as transformações sociais urgentes não só em nosso estado, mas no país.

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