
Por Luiz Prado, do Jornal da USP
A edição 146 da Revista USP se dedica ao escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). O dossiê trazido pela revista apresenta artigos que se debruçam sobre os manuscritos do escritor, que estão sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. A revista está disponível gratuitamente neste link.
Entre a Escrita e a Escrituração: a Prosa de Guarda-Livros de Graciliano Ramos, artigo que abre o dossiê, investiga os famosos relatórios elaborados por Graciliano Ramos quando foi prefeito do município alagoano de Palmeira dos Índios. “Os relatórios do prefeito Graciliano Ramos há muito integram a obra do escritor alagoano, ocupando uma posição singular em tal conjunto. Em linhas gerais, apresentam-se como uma espécie de amálgama entre as dimensões ética e estética fundantes em sua literatura”, escreve Thiago Mio Salla, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e organizador do dossiê.

O próprio Graciliano Ramos considerava os documentos uma espécie de ponto de partida da sua carreira literária, aponta Mio Salla, apesar de terem sido integrados às obras completas do escritor apenas depois de sua morte. Ainda hoje, contudo, esses textos não tiveram uma interpretação adequada a partir da legislação da época, da atividade de guarda-livros que o escritor exerceu ou mesmo das obras que publicou a partir dos anos 1930, indica o pesquisador.
“Em regra, os documentos são tomados quase atemporalmente, a partir de uma clave biográfica”, escreve Mio Salla. “Isso se dá ou em uma perspectiva ética, em que avultam a lisura, a honestidade e a correção da figura modelar do prefeito Graciliano Ramos, ou em chave estética, ganhando relevo o estilo ‘literário’ empregado nos documentos, nos quais prevaleceria o escritor Graciliano Ramos que então gestava seu primeiro romance.”

Ieda Lebensztayan, crítica literária, pesquisadora e ensaísta, assina o artigo Capítulos Reescritos de Memórias do Cárcere: Graciliano Ramos e o Estilo Crítico de Compreender a Si e o Outro. Fruto de pesquisas realizadas no acervo do IEB e em outras instituições, o texto traz capítulos de Memórias que foram reescritos pelo autor para publicação na imprensa.
Onze capítulos da obra, lembra Ieda, foram retrabalhados por Graciliano e trazem diferenças em relação aos originais publicados pela Livraria José Olympio Editora em 1953, meses após a morte do autor. “Um olhar para algumas alterações feitas por Graciliano nesses capítulos reescritos, em comparação com as versões publicadas por 70 anos, é suficiente para se ter certeza da necessidade de incorporá-los às Memórias do Cárcere”, escreve Ieda. “Não faria sentido o memorialista se concentrar de forma obstinada no aprimoramento estilístico dos textos apenas para divulgá-los na imprensa, e não para a publicação em livro.”
Em 2025, esses capítulos revisados foram incluídos em uma nova edição de Memórias do Cárcere, publicada pela Penguin-Companhia das Letras, com notas indicando os trechos alterados e texto estabelecido pela própria Ieda. Sobre o material, a pesquisadora analisa que “sobressai a inteligência de Graciliano ao escolher os primeiros textos de suas Memórias apresentados ao público, bastante significativos das situações experienciadas na prisão e de tipos sociais e humanos então conhecidos de perto”, escreve. “Dedicado sempre ao trabalho formal, em especial na reescrita de capítulos de Memórias do Cárcere, o astrônomo do inferno Graciliano respeitava o valor de cada palavra em seus contextos e igualmente buscava compreender a si e as diferentes pessoas, para além de estereótipos, com seus fatores econômicos, sociais e psicológicos.”

O romance Vidas Secas é o centro do artigo de Mario Santin Frugiuele, doutor em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e gerente editorial da Editora Todavia. Frugiuele realiza uma leitura genética da obra, apoiada nos manuscritos de Graciliano presentes no IEB, atento à escrita e à reescrita, aos cortes, acréscimos e substituições. Com isso, a montagem obsessiva do romance – fruto do cuidado estilístico extremo do autor – ganha relevo.
“A cada linha escavada, a cada operação genética esclarecida, a impressão de estarmos diante de uma façanha literária se faz mais e mais presente”, escreve Frugiuele. “A aparente facilidade que emana do livro já impresso, disposto nas prateleiras das livrarias com páginas bem-compostas (e sem rasuras), dá lugar a uma certeza assombrosa: nenhuma palavra é gratuita. Em busca de seu ideal estético, Graciliano embarca numa empresa de desfecho incerto para de lá voltar com um dos clássicos definitivos da literatura nacional.”
Em Graciliano Ramos, Leitor e Escritor de Poesia, Mio Salla se reúne a Matheus Monteiro Molina, mestrando em Letras pela FFLCH, para apresentar aos leitores uma face oculta do escritor alagoano: a de poeta. Entre as décadas de 1910 e 1920, Graciliano, sob pseudônimos, publicou seus poemas em jornais de Alagoas e do Rio de Janeiro. Além disso, traduziu para o português uma série de poemas franceses e italianos.
“É que antes do romancista houve o leitor e o escritor de poesia, que se revela em cartas, conversas com a imprensa, trechos de seus romances e no acervo da própria biblioteca que sobreviveu à sua prisão em Maceió, em 1936, e à sua consequente mudança para o Rio de Janeiro”, escrevem os pesquisadores. Graciliano foi leitor tanto de Olavo Bilac quanto de Bocage, Manuel Bandeira e Murilo Mendes.
Foi com os versos que Graciliano iniciou nos meios literários e se tornou conhecido na cena local, mas o escritor renegou totalmente essa produção. Ainda assim, Mio Salla e Molina afirmam que a poesia não abandonou completamente sua pena. “Apesar de não ter seguido escrevendo poemas, a impressão que nos fica ao ler seus romances e memórias é de um texto marcado por um ritmo próprio da poesia, e o desejo sempre inesgotável de fazer literatura.”
No artigo A Primeira Coisa Guardada e a Desaparecida: Apagamento e Memórias em Infância, de Graciliano Ramos, a escritora e jornalista Luciana Araujo Marques, doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, observa naquele romance do escritor, lançado em 1945, a violência que moldou a base da formação do Brasil e sua cultura punitiva, “geradora de um legado de medo, desamparo e desaparecimentos que não se encerra naqueles anos primordiais”.
Raça e Classe em Graciliano Ramos encerra o dossiê. Escrito por Edilson Dias de Moura, doutor em Letras pela FFLCH, o artigo discute a abordagem racial nos romances do autor, cruzando-a com implicações de classe. Moura debate as influências positivistas e cientificistas na formação de Graciliano e suas tintas em sua produção literária.
“Graciliano educou-se sob os auspícios do projeto autoritário e eugenista da República. Contra sua continuidade insurgiu-se na década de 1930”, escreve Moura. “Essa via de raciocínio corresponde ao seu próprio entendimento quanto à origem de seus romances, não apenas inspirados em contos sobre criminosos nos anos 1920, mas também da reflexão a respeito de a quem se atribuía a criminalidade, contestando suas bases teóricas na vida pública e na arte.”

A revista traz ainda, na sessão Arte, um artigo de Camila Diaz de Goes, que trabalha com a catalogação do Fundo Graciliano Ramos do IEB, reunindo fotografias da viagem realizada pelo escritor à União Soviética, em 1952, acompanhando uma delegação do Partido Comunista do Brasil, o PCB.
A seção Textos apresenta dois artigos. Um deles, Consolações de Saramago, aborda a produção literária do escritor português José Saramago (1922-2010) e é assinado pelos professores da Unicamp Marcos Lopes e Alexandre Soares Carneiro. O outro artigo da seção, Voltar ao Affaire Sofitel, de Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela FFLCH, analisa a acusação de estupro feita ao então presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI) Dominique Strauss-Kahn, em 2011.
Duas obras lançadas recentemente são resenhadas na seção Livros, completando a edição 146 da Revista USP: Walter Benjamin e a Guerra de Imagens, de Márcio Seligmann-Silva, é comentado pelo pesquisador Julio Augusto Xavier Galharte, e Capitalismo Paradoxante: um Sistema Adoecedor, de Vincent de Gaulejac e Fabienne Hanique, é tema da resenha assinada pelo professor Evaldo Piolli, da Unicamp, e pela professora Iael de Souza, da Universidade Federal do Ceará (UFC).