sexta-feira, 31/10/2025
Notícias que São Paulo precisa
Saúde Pública

Tarcísio e o fim da FURP: recuo na soberania sanitária e no direito à saúde

Projeto do governo de SP quer extinguir a Fundação para o Remédio Popular, maior fabricante pública de medicamentos da América Latina
Furp ajuda na regulação de compras e garante remédios nos momentos de cries. Foto: Furp, divulgação
Furp ajuda na regulação de compras e garante remédios nos momentos de cries. Foto: Furp, divulgação

Por Fábio Alves

O governo estadual protocolou na Alesp o Projeto de Lei Complementar 49/2025 para extinguir a Fundação para o Remédio Popular (FURP), laboratório farmacêutico oficial do Estado de São Paulo e maior fabricante público de medicamentos da América Latina. É uma iniciativa que afronta o direito constitucional à saúde, compromete a logística do SUS e fragiliza a soberania sanitária do país.

Receba nossas notícias

Extinguir a Fundação para o Remédio Popular (FURP) é um ataque frontal à soberania sanitária, ao direito constitucional à saúde e à espinha dorsal do abastecimento de medicamentos do SUS em São Paulo. Quando o governador Tarcísio escolhe reduzir capacidades públicas — sob o argumento de “eficiência” e “enxugamento” — ele traduz um modo de gestão que subfinancia, terceiriza ações estratégicas em saúde, diminui o tamanho e a importância do SUS. O resultado previsível é desabastecimento, preços mais altos e maior dependência de interesses privados que não têm obrigação de garantir continuidade terapêutica à população.

Por que defender a FURP?

A FURP integra a espinha dorsal do abastecimento de medicamentos do SUS. Vinculada à Secretaria de Estado da Saúde, ela desenvolve, produz, armazena e distribui fármacos dos componentes Básico, Estratégico e Especializado, garantindo acesso regular a itens essenciais (dos antibióticos a tratamentos crônicos) para milhares de municípios. Essa é a função pública que mercados privados, orientados por preço e margem, não têm obrigação de cumprir.

A trajetória da FURP não é episódica: criada em 1974 e consolidada com plantas industriais em Guarulhos e Américo Brasiliense, a Fundação foi construída como política de Estado para reduzir vulnerabilidades nas cadeias de insumos críticos. Essa história traduz uma escolha estratégica: produzir localmente para garantir o abastecimento público, especialmente em momentos de crise.

A FURP cumpre três papéis estratégicos que nenhuma compra isolada substitui:

  • segurança de abastecimento — funciona como amortecedor das crises de mercado e rupturas de estoque;
  • regulação de preços — a produção pública referencia custos e disciplina o mercado;
  • capacidades de Estado — preserva conhecimento tecnológico, quadros qualificados e logística aderente às necessidades do SUS no território;

Desmontar um laboratório público que sustenta a política de medicamentos desloca o Estado da posição de garantidor para a de comprador dependente de fornecedores privados e do humor do mercado internacional.

Fechar a FURP é desmontar capacidades que levam décadas para construir e minutos para perder. É trocar um ativo público essencial por promessas abstratas de “eficiência” que, na prática, significam mais vulnerabilidade sanitária.

O modo de gestão em disputa

Fábrica de medicamentos ameaçada pelo governo Tarcísio. Foto: Furp, divulgação
Fábrica de medicamentos ameaçada pelo governo Tarcísio. Foto: Furp, divulgação

Há dois caminhos. O primeiro — que defendo — reconhece que saúde é direito de cidadania e dever do Estado, e por isso investe, qualifica e moderniza suas instituições. O segundo — hoje dominante no Palácio dos Bandeirantes — trata a saúde como centro de custo a ser enxugado, reduzindo o papel estatal à função de comprador dependente. Esse olhar, aplicado à FURP, subfinancia o que é público, fragiliza a governança e abre espaço para que o preço e a disponibilidade de medicamentos sejam ditados pelo mercado.

Quando o laboratório público fecha, o remédio atrasado na UBS deixa de ser exceção e vira rotina. O diabético que precisa de regularidade, a criança com antibiótico prescrito, o idoso com doença crônica: todos passam a depender de um mercado que sobe preço, escolhe portfólio e sai quando não compensa. O SUS perde poder de barganha; o município vira refém; a família pobre paga a conta.

Alternativa responsável: reformar sem destruir

Defender a FURP não significa negar problemas — significa enfrentá-los com política pública séria. O que precisamos é:

  • plano de modernização industrial e de qualidade, com metas, cronograma e transparência;
  • integração logística da rede estadual com os municípios para reduzir perdas e prever demanda;
  • orçamento estável e regras de governança que blindem a instituição de usos políticos episódicos;
  • política estadual de medicamentos com previsibilidade orçamentária e compras articuladas, reforçando a FURP como parceira âncora do SUS paulista.
  • parcerias tecnológicas com a rede de laboratórios oficiais e universidades, ampliando portfólio e inovação.
  • Ampliar a Política de Assistência Farmacêutica Estadual com o tema do Uso Racional de Medicamentos como Tecnologia do Cuidado

Chamado democrático à mobilização

O PLC 49/2025 não é um ajuste administrativo; é uma mudança estrutural com efeitos em cascata: risco de desabastecimento, aumento de preços, descontinuidade de programas e perda de quadros técnicos altamente especializados. A própria Alesp reconhece, nas discussões e audiências em curso, que o projeto extingue a FURP e transfere atribuições, sem demonstrar como manterá, sem solução de continuidade, a oferta pública de medicamentos. Extinguir primeiro e planejar depois é receita para o caos sanitário.

A hora é de denúncia e mobilização. Denúncia, porque fechar a FURP viola o interesse público. Mobilização, porque somente a pressão social — usuários, trabalhadores, gestores municipais, entidades científicas e movimentos populares — pode deter o desmonte.

Defendamos audiências públicas de verdade, transparência integral dos estudos e a retirada do projeto de extinção, abrindo uma mesa de fortalecimento institucional com prazos e indicadores.

Sem FURP, o SUS paulista encolhe. Com FURP forte, o Estado protege vidas, organiza o mercado e garante que remédio não falte — seja em tempos de normalidade, seja em crises sanitárias. Em nome do direito à saúde e da soberania sanitária, não ao fechamento da FURP.

Não é hora de desmontes. É hora de reconstruir capacidades públicas para que ninguém fique sem remédio. Extinguir a FURP é abrir mão de uma ferramenta que salva vidas todos os dias — desde a atenção básica até tratamentos complexos. Em nome do SUS, da Constituição e da soberania sanitária, defendamos a FURP.

Fábio Alves - Foto: acervo pessoal
Fabio Alves – Foto: acervo pessoal

Fabio Alves é médico e professor da Unicamp.


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

Radar Democrático
Radar Democráticohttp://radardemocratico.com.br
Radar Democrático é um portal de notícias focado no estado de São Paulo. Valorizamos a democracia, a pluralidade de ideia, a diversidade étnica e cultural, e os direitos humanos. Acreditamos na mobilização e organização da população como fundamentais para as transformações sociais urgentes não só em nosso estado, mas no país.

FAÇA UM COMENTÁRIO

Por favor, escreva seu comentário!
Por favor, escreva seu nome

Últimas notícias

Atos pelo Brasil protestam contra o massacre no Rio de Janeiro

Entidades do movimento negro e de direitos humanos convocam...

‘Não se faz consórcio de paz em cima de cadáveres’, diz especialista sobre governadores de direita

Por Adele Robichez e Lucas Krupacz, do Brasil de...

Reforma Administrativa: austeridade para uns, privilégios para outros

Por Luiz AzevedoA reforma administrativa articulada pela presidência da...

Comissão Arns cobra governador: chacinas no Rio têm cada vez mais vítimas

A Comissão Arns divulgou uma nota pública expressando "consternação"...

Fachin concorda que julgamento da Lei da Grilagem de Tarcísio não pode demorar

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson...

Topics

Atos pelo Brasil protestam contra o massacre no Rio de Janeiro

Entidades do movimento negro e de direitos humanos convocam...

Reforma Administrativa: austeridade para uns, privilégios para outros

Por Luiz AzevedoA reforma administrativa articulada pela presidência da...

Comissão Arns cobra governador: chacinas no Rio têm cada vez mais vítimas

A Comissão Arns divulgou uma nota pública expressando "consternação"...

Fachin concorda que julgamento da Lei da Grilagem de Tarcísio não pode demorar

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson...
spot_img

Related Articles