
Renúncias fiscais em São Paulo já rivalizam com os gastos em saúde e educação, crescem acima da inflação e carecem de transparência — pesquisa revela alertas sobre risco legal, falhas de controle e impacto direto nos direitos sociais.
Por Rogério Bezerra da Silva
Embora os governos justifiquem que a renúncia fiscal tenha como objetivo a promoção de desenvolvimento econômico ou fomento a setores estratégicos, na prática seu uso pode representar uma ameaça aos direitos sociais e constitucionais. A previsão orçamentária do Estado de São Paulo para 2026 mostra que os gastos tributários — renúncias fiscais concedidas a setores específicos — devem ultrapassar R$ 85,6 bilhões, praticamente o mesmo valor previsto para áreas essenciais como educação, saúde e as universidades estaduais, que juntas receberiam cerca de R$ 88 bilhões. Mas, para onde vão os recursos das renúncias fiscais?
As renúncias de receita do ICMS no Estado de São Paulo têm crescido de forma expressiva e pouco transparente, segundo a dissertação de mestrado de Gabriel Marques Tonelli, defendida na USP em 2020.
Tonelli dedica seu estudo à dimensão financeira-orçamentária e normativa-legal dessas renúncias entre 2002 e 2020, e seus resultados colocam em xeque a gestão fiscal e o cumprimento da lei por parte do governo estadual.l
Crescimento real acima da inflação
Uma das conclusões mais contundentes do estudo é sobre o aumento das estimativas de renúncia de ICMS nas LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). Segundo Tonelli:
“As renúncias de receita do ICMS do estado de São Paulo apresentaram um crescimento real (acima da inflação) de mais de 150% no período analisado.”
Na dissertação ele detalha que esse salto ocorreu de 2002 a 2019, segundo as previsões constantes nas LDO, chegando a valores próximos a R$ 17 bilhões em alguns anos.
Divergência entre previsão e execução
Outro ponto de forte crítica é a discrepância entre o que é estimado na LDO e o que aparece na LOA (Lei Orçamentária Anual). Tonelli afirma:
“Em todos esses anos, a LOA apresentou, no mínimo, um valor 23% menor do que o apresentado na LDO, mas chegando a uma diferença de até 40%, como em 2012.”
Essa disparidade, para ele, não é apenas contábil, mas “nos mostra que há uma falha grave no processo orçamentário do estado (…) não sendo possível analisar o que, de fato, está ocorrendo.”
Peso das renúncias no orçamento do estado
Tonelli vai além e compara as renúncias com as despesas públicas previstas para diferentes funções do orçamento:
“Quando comparamos essas renúncias com as despesas do estado, verificamos, em 2019, por exemplo, que apenas as funções educação, encargos especiais, previdência social, saúde e segurança pública possuem valores maiores do que o de renúncias.”
Em outras palavras, nas estimativas orçamentárias, os valores renunciados em ICMS superam gastos importantes de funções como transporte, habitação, direitos da cidadania e administração.
Além disso, Tonelli alerta que:
“A partir de 2016, os valores renunciados superam os investimentos do estado.”
Esse dado sugere que o Estado renuncia mais ao arrecadar do que investe em infraestruturas ou políticas públicas.
Risco legal e improbidade administrativa
A pesquisa não faz apenas uma análise de números: Tonelli levanta preocupações jurídicas. Ele aponta que a concessão de renúncias fiscais parece ocorrer sem os mecanismos de controle exigidos pela legislação. No resumo da dissertação, ele diz que essas renúncias não divulgam as informações necessárias, o que pode incorrer em improbidade administrativa.
E conclui que esse conjunto de práticas pode comprometer a transparência e a responsabilização na gestão fiscal.
Transparência ainda insuficiente
Tonelli sugere ainda que a Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) tem exercido pouco controle efetivo sobre essas renúncias:
“Encontramos pouquíssimos casos em que os deputados questionaram tais falhas do executivo, algo que nos mostra deficiência no papel de controle que o legislativo deveria executar.”
Esse déficit de fiscalização, alerta o autor, dificulta não apenas a visibilidade pública das renúncias, mas também a possibilidade de avaliação se esses incentivos fiscais estão gerando os efeitos econômicos ou sociais pretendidos.
Chamado a mudanças
Tonelli defende a adoção de políticas mais rigorosas:
- Maior transparência sobre o cálculo e a execução das renúncias;
- Padronização dos demonstrativos de renúncia nas LDOs e LOAs;
- Avaliação individual de cada benefício fiscal, para compreender se ele de fato justifica a renúncia;
- Criação de instrumentos legais e institucionais para responsabilizar gestores públicos, caso não haja cumprimento das exigências legais.
Com base no estudo de Tonelli, fica evidenciado que as renúncias de ICMS em São Paulo não são medidas neutras: são volumosas, crescentes, mal justificadas e pouco sujeitas a controle. A análise acadêmica aponta riscos orçamentários concretos — renúncias que ultrapassam investimentos do estado — e alerta para uma possível falta de responsabilização legal dos agentes públicos.
A pesquisa é um chamado forte para que a sociedade, o Legislativo e órgãos de controle — como tribunais de contas ou promotorias — observem atentamente essas práticas, para garantir que os benefícios fiscais concedidos não corroam os recursos públicos nem violem a lei.
Rogério Bezerra da Silva é Geógrado, Mestre, Doutor e Pós-doutor e Pós-doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp.


