Pesquisadores do Instituto Butantan desenvolvem Butantan–DV, a nova vacina de dose única contra a dengue. Enquanto o avanço científico é celebrado, o desmonte da SUCEN expõe fragilidades na vigilância e no controle de vetores em São Paulo.
Por Rogério Bezerra da Silva
A chegada da Butantan–DV — vacina de dose única contra a dengue — é, sem dúvida, um motivo de orgulho para a ciência brasileira e, especialmente, para as instituições públicas de São Paulo. Mas ao mesmo tempo acende um sinal de alerta: a eficácia da vacina, concentrada na dengue, não elimina o risco de outras arboviroses — e a extinção da SUCEN (Superintendência de Controle de Endemias do Estado de São Paulo), antiga autarquia estadual de vigilância e controle de endemias, expõe uma fragilidade grave no controle desses vetores. Ou seja: o feito científico convive com um risco institucional que pode comprometer parte dos ganhos atingidos.
Um marco de conquista científica e sanitária
O desenvolvimento da Butantan-DV é fruto de décadas de pesquisa, colaboração institucional, financiamento público e da capacidade técnico-científica do estado de São Paulo. A vacina representa concretamente o potencial de transformar o enfrentamento da dengue no país — uma doença que há anos aflige milhões de pessoas, gera hospitalizações e mortes, e sobrecarrega o sistema de saúde.
Esse tipo de resposta sanitária demonstra que a ciência pública em São Paulo ainda pode entregar resultados de ponta e salvar vidas, reforçando a soberania de saúde, autonomia produtiva e a relevância do investimento estatal em pesquisa e produção de vacinas e medicamentos. Há mérito, assim, em celebrar a conquista — sem esquecer os desafios.
A importância histórica e atual da SUCEN no controle de vetores
A SUCEN, criada originalmente pelo Decreto-Lei nº 232 de 1970, com regulamentação formalizada pelo Decreto nº 46.063/2001, teve por missão promover o controle de doenças transmitidas por vetores e hospedeiros intermediários (mosquitos e moluscos, por exemplo) no Estado de São Paulo.
Ao longo das décadas, a SUCEN atuou não só contra a dengue, mas também na vigilância e combate de outras endemias: malária, doença de Chagas, esquistossomose, leishmaniose, febre amarela, febre maculosa, entre outras.
Em 1985, por exemplo, com a detecção de focos do mosquito vetor, a SUCEN incorporou ações de vigilância e controle específicas contra o Aedes aegypti (mosquito que transmite a dengue, zica, chikungunya e outras doenças) — estruturando levantamentos de infestação, campanhas de educação em saúde, laboratórios de entomologia, coleta de dados entomológicos e epidemiológicos, estratégias integradas de controle vetorial e retaguarda laboratorial, além de apoio técnico aos municípios.
O órgão mantinha laboratórios de referência: por exemplo, o Laboratório de Entomologia Médica, criado em 1985, era responsável pela identificação de mosquitos de importância médica, pela pesquisa básica em ecologia e biologia de vetores, pela formação de técnicos e pelo suporte técnico-científico às ações de campo.
Além disso, a SUCEN era essencial na articulação com municípios e no financiamento de ações de controle vetorial, especialmente nos momentos de epidemias ou risco de surto — quando era necessário mobilizar equipes e recursos de forma coordenada e em escala estadual.
Em síntese: a SUCEN funcionava como pilar institucional para a vigilância entomológica, a investigação epidemiológica, o controle de vetores e o apoio técnico-científico aos municípios — uma estrutura indispensável para prevenir, detectar e responder a surtos de dengue e de outras doenças transmitidas por vetores.
Por que o desmonte da SUCEN acende o sinal de alerta
Em abril de 2022, um decreto do governo estadual extinguiu a SUCEN, transferindo suas atribuições para a Secretaria da Saúde.
Desde então, reportagens e organizações científicas alertam para os efeitos colaterais dessa decisão: equipes fragmentadas, laboratórios sem estrutura, suspensão de pesquisas, enfraquecimento da capacidade de controle vetorial e de vigilância — especialmente no período crítico de maior incidência de arboviroses.
Como sistematicamente apontado pela APqC (Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo), a extinção da SUCEN trava estudos e atrapalha ações de combate a epidemias. A dispersão das equipes inviabilizou parte do que era central nas ações de campo: inspeções domiciliares, levantamento entomológico, laboratórios regionais com autonomia e capacidade técnica para rápido diagnóstico e resposta — todas medidas essenciais não somente contra a dengue como também contra a zika, chikungunya, febre amarela urbana (teoricamente) e outras arboviroses.
Ou seja: num cenário em que o vetor continua presente — como historicamente está no Estado —, desarticular a instituição que tinha a expertise e a estrutura para combatê-lo é um esforço incompatível com uma política de saúde pública preventiva e eficaz.
A contradição concreta: vacina sem vigilância reforçada
É nesse duplo contexto — vacina contra dengue associada ao desmonte institucional de controle de vetores — que reside a principal contradição:
- A Butantan-DV pode reduzir a carga de dengue, o que por si só já representa um feito gigante.
- Mas o Aedes aegypti não transmite apenas dengue. Ele continua capaz de propagar zika, chikungunya e, potencialmente, outras arboviroses. Sem vigilância entomológica, laboratórios e equipes de campo robustas, o risco de ressurgimento ou ampliação dessas doenças é real.
Em outras palavras: vacinar é fundamental, mas o controle do vetor é indispensável, haja vista que ele causa outras doenças além da dengue. E essas outas doenças a vacina não previne.
Celebração com responsabilidade: uma lição para o governo do estado de São Paulo
A Butantan–DV simboliza o que pode ser alcançado quando há investimento público consistente em ciência, tecnologia e produção nacional. Mostra que São Paulo — e o Brasil — têm capacidade de enfrentar desafios sanitários de forma autônoma, científica e socialmente justa.
Mas, cabe o alerta ao governo do estado de São Paulo: a vacina deve ser parte — não o todo — de uma estratégia abrangente de saúde pública. Garantir vigilância contínua, laboratórios ativos, equipes de campo e financiamento técnico é tão indispensável quanto garantir doses.
Se o governo do estado está realmente preocupado com a vida da população — em fazer com que o êxito de hoje não vire fragilidade amanhã — é urgente repensar o desmonte da estrutura da SUCEN que, por décadas, foi a espinha dorsal do controle de endemias em São Paulo.
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Rogério Bezerra da Silva é Geógrafo, Mestre e Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp.
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