
A cooperação internacional entre universidades públicas paulistas e instituições chinesas deixou de ser apenas um intercâmbio acadêmico: ela está se tornando uma estratégia concreta de desenvolvimento tecnológico sustentável e inclusivo socialmente.
USP, Unicamp e Unesp vêm firmando acordos com centros de ensino e pesquisa chineses em áreas como energia limpa, robótica, medicina tradicional e biotecnologia, sempre com a meta de conectar ciência e tecnologia – ou tecnociência, como discutido nos trabalhos do professor da Unicamp, Renato Dagnino – às necessidades reais da população.
Essa agenda se alinha ao contexto em que a China é hoje o segundo maior investidor global em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), com mais de US$440 bilhões anuais investidos, segundo a OCDE. O país tornou-se também líder mundial em patentes registradas e artigos científicos publicados, conforme dados da OMPI e Scopus.
Além disso, a China tem se destacado internacionalmente por adotar uma política tecnocientífica voltada para missões sociais, com foco em desafios como a redução da pobreza, a transição energética e a ampliação do acesso à saúde. Pesquisadores chineses, como Angang Hu, Liu Xielin e Yuzhuo Cai, demonstram como o país articula ciência e tecnologia a objetivos de interesse coletivo.
Sino-Paulo: dados que sustentam a parceria
O estado de São Paulo concentrou 39% dos investimentos chineses no Brasil entre 2007 e 2023, segundo relatório da ApexBrasil e do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).
A FAPESP já firmou ao menos cinco acordos formais de cooperação científica com instituições chinesas desde 2014, incluindo Peking University, Zhejiang University e o Fundação Nacional de Ciências Naturais da China (NSFC), consolidando redes binacionais de pesquisa em áreas estratégicas para a sociedade.
A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil, responsável por mais de US$104 bilhões em comércio bilateral em 2023, de acordo com o Ministério da Economia, o que torna a aproximação acadêmico-científica um eixo necessário da diplomacia tecnológica.
Entre 2016 e 2021, na área de Ciência da Informação, por exemplo, foram identificados 6.417 artigos publicados indexados na Web of Science, sendo 2.005 com autoria vinculada a instituições brasileiras e 4.412 a instituições chinesas, de acordo com o estudo “A publicação científica brasileira e chinesa indexada na Web of Science: análise da área de Ciência da Informação”, de Laura Santos, Rosângela Schwarz e Patrícia Neubert (publicado em 2023). A produção chinesa, mais que o dobro da brasileira, confirma sua liderança científica já apontada pelo Science & Engineering Indicators 2018, que indica a China como maior produtora mundial de ciência, superando os Estados Unidos.
Esses dados reforçam que a conexão entre São Paulo e China não é episódica, mas estruturante e as universidades públicas são protagonistas nesse processo, contribuindo com tecnociência voltada ao bem comum.
Colaboração com impacto social: mais que intercâmbio, coprodução
A coprodução de conhecimento tecnocientífico refere-se à construção compartilhada de saberes entre pesquisadores acadêmicos e outros atores sociais — como movimentos populares, gestores públicos, trabalhadores e comunidades locais — em processos que integram diferentes formas de conhecimento, interesses e práticas.
Na perspectiva da coprodução, o conhecimento tecnocientífico passa a ser compreendido como um bem público construído de maneira dialógica e situada, favorecendo abordagens transdisciplinares e comprometidas com a transformação social, como vem sendo praticado pelo LabCidade da FAU-USP, Observatório de Políticas Públicas da FCA-Unicamp, Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp, o Núcleo de Extensão e Pesquisa em Economia Solidária, Criativa e Cidadania da Unesp, entre outros.
Esse enfoque é particularmente relevante nas cooperações entre as instituições de ensino e pesquisa chinesas e as paulistas. Essas cooperações apostam em pesquisa aplicada à realidade social, com atuação binacional e transferência de conhecimentos entre os atores partícipes do processo, como nas parcerias destacadas a seguir:
1) Tecnociência voltada ao bem comum
Com forte aderência às agendas da Agenda 2030 da ONU, em especial os ODS 4 (educação de qualidade), 7 (energia limpa), 9 (inovação) e 10 (redução das desigualdades), destacam-se:
- Unicamp e Universidade de Tecnologia Qilu (Shandong) – Centro de Cooperação e Inovação em Energia de Baixo Carbono Inteligente, focado na transição energética e cidades inteligentes.
- Unesp e a Editora de Ciências Educacionais da China – Cooperação estratégica para difusão de clássicos acadêmicos sino-brasileiros, ampliando acesso à produção de conhecimento bilateral.
- USP e Universidade de Tsinghua – Projetos em energia solar, inteligência computacional e sistemas ciberfísicos, com apoio da Fapesp e da Capes.
- IME-USP e ICM-SUSTech (China) – Rede colaborativa em matemática pura e aplicada, ampliando a presença brasileira na fronteira científica mundial.
- Instituto Confúcio da UNESP – promoveu a parceria da UNESP com a Universidade de Hubei, com chancela do governo chinês e apoio do Escritório Nacional para o ensino da língua chinesa na universidade paulista.
Esse modelo de cooperação também está alinhado ao Plano Diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação de São Paulo, que destaca a internacionalização científica e o desenvolvimento tecnocientífico como pilares de sua estratégia.
2) Medicina tradicional chinesa como estratégia complementar de saúde pública
As parcerias também exploram práticas integrativas. A cooperação entre o Centro de Acupuntura do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da USP e a China Medical University busca expandir o uso de fitoterapia chinesa no contexto brasileiro.
O Lapacis (Laboratório de Práticas Alternativas Complementares e Integrativas em Saúde da Unicamp), com apoio do Instituto Confúcio da Unicamp, promoveu o evento “A prática da Medicina Chinesa nos serviços de saúde da Prefeitura de Campinas”, com foco na medicina tradicional como recurso complementar no SUS.
Considerando a atenção básica e os serviços de média e alta complexidade, existem cerca de 9.350 estabelecimentos de saúde no país ofertando 56% dos atendimentos individuais e coletivos em Práticas Integrativas e Complementares nos municípios brasileiros, compondo 8.239 (19%) estabelecimentos na Atenção Básica, distribuídos em 3.173 municípios, segundo dados do Ministério da Saúde. Essa estratégia reforça o papel da universidade como mediadora de saberes e práticas interculturais no campo da saúde coletiva.
3) Energia limpa e hidrogênio verde: ciência para cidades sustentáveis
As pesquisas paulistas-chinesas em energia visam acelerar a transição energética. Projetos da Unicamp com a Academia de Ciências de Shandong focam em hidrogênio verde, biomassa e eficiência energética urbana.
A USP e a Sharjah University (UoS) firmaram memorando de entendimento voltado à troca de conhecimentos sobre mudanças climáticas, mercado de carbono e soluções baseadas na natureza, com envolvimento de pesquisadores chineses.
Em um contexto em que o Brasil precisa diversificar sua matriz energética (hoje ainda 60% dependente de hidrelétricas, segundo a ANEEL), a cooperação internacional torna-se fundamental para o avanço das energias solar, eólica e de hidrogênio verde — áreas em que a China é líder global em tecnologias e patentes.
Cooperação entre universidades chinesas e paulistas: vetores da transformação social
As universidades públicas paulistas, ao priorizarem cooperação internacional com propósito social, apontam caminhos para um novo paradigma científico: a tecnologia como instrumento de justiça social.
Essa estratégia implica aproximar o conhecimento científico das práticas sociais e territoriais — seja na saúde, na energia, na educação ou na cultura, como vem sendo feito pela Diretoria Executiva de Relações Internacionais da Unicamp (DERI), por exemplo.
A DERI vem tecendo, de forma estratégica, uma rede de cooperação acadêmica e institucional com a China, alinhada ao propósito de usar a tecnologia como instrumento de justiça social. Entre as iniciativas mais recentes e relevantes, destacam-se: recepção de comitiva da Universidade de Zhejiang, missão acadêmica da Unicamp na China, reitora da Comissão de Educação de Pequim, delegação da SWUFE, visita de empresas chinesas de saúde, acordo com Universidade de Shenzhen.
Em tempos de crise climática, desigualdade e avanço tecnológico acelerado, a parceria entre as instituições públicas de ensino e pesquisa de São Paulo e China sinaliza que a cooperação científica internacional pode — e deve — ser voltada ao interesse público.
É mais do que uma troca entre laboratórios. É uma aliança bilateral pela vida digna, pela cidade sustentável, pela educação libertadora. É tecnociência sino-paulista com raiz nas universidades públicas paulistas e com horizonte planetário.
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.