segunda-feira, 14/07/2025
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Cooperação China-Unicamp: ciência, tecnologia e solidariedade

Em vez de apenas firmar convênios tradicionais de cooperação internacional, a Unicamp e instituições de ensino e pesquisa chinesas tem se destacado por adotar uma abordagem centrada no desenvolvimento tecnocientífico solidário. Trata-se de uma cooperação que integra ciência de fronteira, justiça social e inovação orientada para as necessidades concretas da população.

A parceria da Unicamp com instituições chinesas vem se constituindo como vetor estratégico para promover transformações sustentáveis e inclusivas em diversas áreas do conhecimento tecnocientífico.

O Centro de Cooperação e Inovação em Ciência e Tecnologia de Energia de Baixo Carbono Inteligente Shandong–São Paulo, fruto da colaboração entre Academia de Ciências de Shandong, Universidade de Tecnologia Qilu e Unicamp, tem como objetivo a co-produção de conhecimento com impacto social e ambiental.

Focada em hidrogênio verde, armazenamento energético e redes inteligentes, essa aliança não visa apenas a transferência de tecnologia entre as instituições, mas a adaptação de soluções energéticas às realidades locais, com diálogo entre cientistas, comunidades e setor produtivo. É ciência comprometida com a transição ecológica e com a solidariedade.

Agricultura de precisão para a soberania alimentar

Em 2024, a Faculdade de Engenharia Agrícola da (FEAGRI) da Unicamp formalizou parceria com a China Agricultural University voltada especialmente à cooperação para a agricultura familiar e os pequenos produtores. O intercâmbio de estudantes e professores é apenas uma etapa de um processo maior: desenvolver tecnologias de alta eficiência, adaptadas a quem historicamente esteve à margem da inovação.

As residências científicas e os cursos conjuntos em mecanização agrícola para assentamentos e cooperativas traduzem, na prática, a proposta de uma tecnociência feita com e para os agricultores, rompendo com a lógica de inovação voltada apenas ao agronegócio.

Humanidades em diálogo internacional

A Unicamp é hoje a única universidade da América do Sul com convênio ativo com a Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS), que está voltado ao fortalecimento de uma ciência social aplicada aos desafios contemporâneos, como pobreza, juventude e mudanças climáticas.

O envolvimento em projetos como a elaboração de manuais sobre estratificação social nos países do BRICS e a realização de aulas conjuntas desde 2021 reflete o compromisso das instituições com uma tecnociência conectada aos contextos do Sul Global, capaz de refletir criticamente sobre as assimetrias globais e propor alternativas.

Cultura, arte e tecnologia de mãos dadas

As visitas institucionais a universidades chinesas como Peking, Fudan e Beijing Jiaotong mostram que a internacionalização da Unicamp envolve uma multiplicidade de “laboratórios”. Ela compreende a valorização das artes, dos saberes tradicionais e da formação cidadã, em iniciativas que combinam energia renovável com caligrafia chinesa, história com biotecnologia, transporte ferroviário com inovação cultural.

Essa perspectiva amplia o campo tecnocientífico ao incluir dimensões simbólicas e subjetivas do desenvolvimento, propondo um futuro que respeita a diversidade cultural.

O HIDS como ecossistema de tecnociência inclusiva

O Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (HIDS), junto ao campus da Unicamp em Campinas-SP, representa a concretude de uma proposta que une pesquisa, educação e transformação social em escala real. Ali, a parceria da Universidade com instituições chinesas deve fortalecer a produção tecnológica voltada aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e que terá como foco as tecnologias socialmente referenciadas.

Nesse sentido, o HIDS pretende articular soluções para o ciclo de alimentos, água e resíduos, não como vitrines tecnológicas, mas como plataformas abertas ao envolvimento comunitário e à replicação socialmente orientada.

Cooperação que pensa e age com o Sul

A cooperação Unicamp-China também pode ser compreendida à luz da noção de “apropriação criativa” como estratégia de desenvolvimento periférico, conforme analisado por Pietro Gibertini e Rafael de Brito Dias, em “Desenvolvimento com características chinesas: um estudo de caso da cultura Shanzhai da China” (2025), como forma de inovação enraizada na realidade social e cultural local.

No caso chinês, esse movimento se manifesta na forma de uma estratégia nacional que instrumentaliza a ciência e a tecnologia para atingir finalidades sociais — como o combate à pobreza, a industrialização verde e a coesão territorial — por meio de planejamento de longo prazo, adaptação de modelos ocidentais e enraizamento filosófico local.

A Unicamp, ao se integrar a essa dinâmica com instituições chinesas, não apenas importa soluções tecnológicas, mas contribui para um modelo de cooperação baseado na inclusão e no compromisso público.

Esse modelo revela um terceiro aspecto essencial: o uso da hibridização como motor de inovação no Sul Global. Em vez de replicar cegamente padrões euro-americanos de internacionalização, a Unicamp vem construindo caminhos próprios, articulando ciência, cultura e política em torno de objetivos coletivos. Nesse sentido, sua atuação como articuladora de políticas públicas, promotora de espaços vivos de experimentação e fomentadora de intercâmbios voltados à justiça social a aproxima de uma espécie de “shanzhai unicampeano” — uma universidade que hibridiza criticamente modelos globais e locais, em prol de um desenvolvimento com características brasileiras.

Para além da excelência acadêmica

Responsável por cerca de 15% da produção científica nacional, a Unicamp tem demonstrado que excelência acadêmica não precisa estar dissociada das demandas sociais. Inspirada por uma perspectiva de ciência orientada socialmente, a Universidade vem ampliando sua atuação para além dos marcos tradicionais da inovação voltada ao mercado.

Embora lidere nacionalmente o registro de patentes, a Unicamp mostra que esses indicadores não esgotam seu potencial transformador. Muitos de seus projetos têm se voltado à construção de soluções tecnológicas e metodológicas em diálogo com comunidades, cooperativas, movimentos sociais e gestores públicos, contribuindo para enfrentar desigualdades e promover o bem comum.

Essa prática aponta para uma reconfiguração dos critérios de avaliação da ciência, incorporando indicadores que expressam compromisso social, como a relevância das parcerias estabelecidas, o impacto socioambiental das pesquisas e a apropriação social dos conhecimentos produzidos.


* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.

Rogério Bezerra
Rogério Bezerrahttps://gravatar.com/creatorloudly177c571905
Geógrafo, Mestre, Doutor e Pós-doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Foi Diretor de Pesquisa Aplicada da Fundacentro. Coordenador do Movimento Pela Ciência e Tecnologia Pública. Atua especialmente em temas relacionados à análise e avaliação de políticas públicas.

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