
Por Vanessa Guadagnini Prates
Em pleno século XXI, enquanto celebramos conquistas históricas das mulheres, um velho fantasma reaparece em trajes contemporâneos: o silenciamento. Mulheres que desafiam estruturas de poder, expõem verdades incômodas ou simplesmente pensam fora do script continuam sendo perseguidas, agora com processos judiciais, algoritmos e cancelamentos no lugar das fogueiras.
Este ensaio revela um episódio emblemático dessa dinâmica, mostrando não só as fissuras políticas do nosso tempo, mas também o risco fatal de substituir uma opressão por outra, mesmo nos espaços que se dizem emancipatórios.
Roteiro antigo e seus novos atores
A história das mulheres é um arquivo de perseguições. Quando ousaram questionar o poder – religioso, político ou social – a resposta foi sempre a mesma: punição. Séculos atrás, isso se manifestava em acusações de bruxaria ou diagnósticos de “histeria”. Hoje, são ações judiciais, tribunais virtuais e a máquina do cancelamento. O objetivo? Calar.
Um caso recente exemplifica bem essa confusão e as contradições do debate atual. Trata-se de uma feminista de esquerda, bastante conhecida por sua atuação política, que acabou processada após afirmar que a mulher mais votada em uma eleição era, biologicamente, um homem. Essa posição gerou ataques e perseguição de ativistas trans ou pessoas trans alinhadas a essa agenda, mostrando como conflitos sobre categorias políticas podem se transformar em hostilidade pessoal e política.
Esse episódio gerou um intenso debate público, marcado por polarizações. De forma surpreendente, parte do apoio a essa feminista veio justamente de grupos conservadores, incluindo setores da extrema direita e religiosos radicais. Apesar das diferenças ideológicas profundas, esses grupos usaram essa defesa como estratégia para confrontar seus próprios adversários políticos.
Essa mulher, no entanto, foi duramente perseguida e sofreu prejuízos significativos, tanto pessoais quanto políticos, nessa polarização exacerbada. Seu nome foi arrastado em disputas que ultrapassaram o campo do debate e se transformaram em ataques direcionados, afetando sua reputação, sua carreira e sua saúde emocional.
Esse apoio desconexo das suas posições e identidade revela como interesses momentâneos e contraditórios se cruzam, complicando ainda mais a compreensão das disputas femininas contemporâneas.
Perseguições fora dos tribunais
Embora a judicialização seja um instrumento evidente de silenciamento, ela não é a única via. Casos recentes mostram que mulheres têm sido alvo de perseguição intensa sem que haja um processo formal. A escritora britânica J.K. Rowling, por exemplo, sofreu ameaças, boicotes e perda de contratos após defender publicamente que a palavra “mulher” se refere a uma realidade biológica, e não apenas a uma identidade de gênero.
No Reino Unido, a candidata liberal Natalie Bird foi suspensa do partido por usar uma camiseta com a definição de “mulher” como “humana adulta”, acusada de transfobia e isolada politicamente. Esses episódios revelam que, mesmo fora dos tribunais, há um mecanismo de coerção que tenta impor silêncio às mulheres que defendem a manutenção da categoria “mulher” como base política e histórica do feminismo. A perseguição pode não constar em um processo, mas o custo pessoal e profissional é tão ou mais devastador.
O Preço do Dissenso
Nesse fogo cruzado, perdemos algo essencial: a capacidade de lidar com o conflito. A crítica, por mais dura que seja, deixou de ser respondida com argumentos e passou a ser criminalizada. Radicalismos não têm cor partidária e podem vir disfarçados tanto de tradições quanto de “justiça social”. O veneno é o mesmo.
Contradição progressista
É um paradoxo duro de engolir: mulheres sendo atacadas ou silenciadas por ativistas trans ou pessoas trans alinhadas a certas agendas. Não é um bispo ou um patrão impondo silêncio, mas a própria trincheira progressista que devora quem ousa discordar. A mensagem é clara: não basta combater o machismo; é preciso aderir a um novo dogma.
Historicamente, mulheres sempre pagaram o preço quando as regras do “pode/não pode dizer” mudaram. Hoje, essas regras são impostas por tribunais, trending topics e julgamentos virtuais. E mudam numa velocidade assustadora. Quem hoje é “do bem” pode amanhã ser tratado como herege.
Por um feminismo que não silencie, mas distinga para unir
Estamos diante de uma encruzilhada perigosa: as mulheres enfrentam violências reais, mas de naturezas diferentes. Reconhecer essas diferenças é fundamental para construir alianças verdadeiras, não falsas uniformidades.
A opressão feminina tem raiz material no controle patriarcal sobre corpos, reprodução e trabalho; uma história milenar traduzida em leis, salários desiguais e violência doméstica. Outras violências emergem de formas específicas de discriminação e precisam ser enfrentadas com ferramentas próprias. Confundir essas lutas não fortalece nenhuma delas.
Diferenciando lutas e violências
A luta das mulheres, enquanto grupo social, tem uma base material e histórica que atravessa séculos. Ela se estrutura na resistência contra o controle patriarcal sobre seus corpos, sua reprodução, seu trabalho e sua autonomia. Essa opressão se manifesta em desigualdades salariais, violência doméstica, feminicídio, direitos reprodutivos cerceados e inúmeros mecanismos legais e culturais que limitam a plena cidadania das mulheres.
Por outro lado, a luta de pessoas trans, legítima e urgente, tem um foco diferente: o enfrentamento da transfobia. Uma violência que se expressa pela negação de suas identidades, exclusão social, discriminação e altos índices de violência física e letal. A negação da identidade de gênero, a invisibilização e o preconceito são marcas centrais dessa luta.
Embora sejam opressões que dialogam e convergem no combate a um sistema estrutural opressor, a natureza dessas violências é distinta. Confundir ou reduzir essas diferenças é abrir mão da complexidade necessária para que ambas as lutas sejam plenamente reconhecidas e atendidas.
Judicialização do debate e o silenciamento das diferenças
O problema central não está na opinião expressa – de que a mulher mais votada pode ser uma mulher trans, ou seja, alguém que nasceu homem -, mas na resposta desproporcional que a judicialização representa. Transformar essa fala em questão judicial é uma estratégia que vai além da simples discordância: é um mecanismo de silenciamento político.
O processo judicial movido contra a feminista foi arquivado pelo STF, reforçando a necessidade de proteção à liberdade de expressão dentro do feminismo e a distinção entre opressões distintas.
Quando o debate sobre as especificidades das lutas femininas é levado para o campo judicial, perde-se a possibilidade de diálogo e de construção coletiva. A judicialização reduz as diferenças a conflitos binários, impede a reflexão crítica e transforma divergências legítimas em crimes simbólicos.
Essa intolerância ao conflito dentro do próprio feminismo não fortalece nenhuma das pautas. Pelo contrário, cria um ambiente hostil onde a pluralidade de vozes é sufocada, e a compreensão das complexidades, que é essencial para avanços reais, é bloqueada.
Assim, a judicialização se torna um instrumento de opressão, invertendo o papel do feminismo como espaço de emancipação para um campo de imposição de silêncios e uniformidades.
O feminismo não pode cair na armadilha de:
1. Exigir que mulheres renunciem ao significado político do termo “mulher”, forjado em séculos de luta contra a opressão sexista;
2. Excluir grupos marginalizados dos espaços de luta por direitos.
A solução está no reconhecimento mútuo:
- sim à proteção contra toda forma de discriminação;
- sim ao direito das mulheres de manter “mulher” como categoria política de resistência feminista;
- não à imposição de silêncios recíprocos.
Não se trata de hierarquizar dores, mas de entender suas especificidades. Justiça não se constrói com apagamentos, mas com o reconhecimento honesto das diferenças. Quando as diferentes lutas femininas se reconhecem como aliadas contra um sistema que lucra com a divisão, encontramos o caminho para avançar juntas, sem exigir que nenhuma renuncie à verdade da sua própria história.
O patriarcado sempre soube que mulheres divididas são mais fáceis de dominar. Cabe a nós provar que podemos distinguir sem dividir, debater sem silenciar e construir solidariedade sem apagar histórias. Essa é a linha que separa um feminismo performático de um verdadeiramente transformador.

Vanessa Guadagnini Prates é historiadora e psicanalista, atua no acolhimento de mulheres em situação de violência.
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.