
Por Maria Eduarda Oliveira*, do Jornal da USP
Popularmente conhecido pela presença da imigração italiana, o Bixiga passou por uma série de políticas de apagamento da memória negra do bairro. Localizado na região central da cidade de São Paulo, o território do Bixiga abrigou no passado o Quilombo do Saracura, que ficava às margens do rio de mesmo nome. Apesar de todas as transformações urbanas que privilegiaram uma política de branqueamento da população da região, o Bixiga ainda pode ser considerado um quilombo. É o que propõe a dissertação “Bixiga Quilombo Presente”, defendida por Flávia Santos Santana na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP.

No final do século 19 e começo do século 20, após a abolição da escravidão, o governo brasileiro promoveu uma forte política de branqueamento, principalmente com o incentivo à chegada de imigrantes europeus. O objetivo era apagar os vestígios das populações indígenas e negras do País, que foi o que mais recebeu escravizados de origem africana até o século 19. A dissertação de Flávia aponta como o Bixiga teve sua estrutura social fortemente marcada por esse e outros movimentos de apagamento racial.
Flávia diz que o apagamento se deu por meio de obras e planos urbanísticos, sendo usados como estratégias de deslocamento e retirando a população malquista do espaço urbanizado. Para a pesquisadora, o Bixiga foi alvo de necropolítica urbana, um tipo de política que não mata diretamente, mas dificulta a vida e, consequentemente, a permanência da população negra no território.
“Podemos pensar sempre em quem é indesejado: os pretos, os pobres, em algumas medidas, os nordestinos. Essa expulsão para as periferias é para que essas pessoas não tenham acesso ao que é a cidade e que ela seja apenas para uma classe hegemônica”, explica a pesquisadora.
Durante a pesquisa, Flávia analisou documentos de algumas obras públicas que afetaram fortemente a comunidade. A mais antiga delas foi a abertura da Avenida Nove de Julho, nos anos 1930, que desalojou famílias negras no Vale do Saracura. Outra foi a construção do Viaduto Armando Puglisi, mais conhecido como Viaduto do Gato, em 1970, que fragmentou o território e ampliou a circulação de automóveis, atrapalhando a vida comunitária. Pouco depois, a construção da Ligação Leste-Oeste foi responsável por alterar de forma significativa a configuração do bairro.
O enfrentamento contra as ações urbanas segue vivo no território. Recentemente, a obra da Linha 6-Laranja do metrô levou novos problemas à comunidade do Bixiga. Para Flávia, todos esses movimentos mostram como as políticas públicas ainda julgam os moradores desse território como menos importantes.

Retomada
Para compreender a história e o papel do quilombo para a comunidade do Bixiga, a pesquisadora utilizou um conceito formulado por intelectuais negros como Beatriz Nascimento e Kabengele Munanga. Eles definem os quilombos para além da ideia de refúgios de escravizados, entendendo-os como formas de organização cultural, religiosa, comunitária e política que seguem vivas em diferentes tempos e espaços. Nesse sentido, o quilombo é um espaço de troca e cultivamento cultural para a comunidade negra, importante meio de existência e resistência, afirma Flávia.
O Bixiga abrigou, ao longo do século 20, sedes do Movimento Negro Unificado, redações da imprensa negra, rodas de samba, casas de capoeira e terreiros de religiões de matriz africana, firmando-se como um local de resgate e preservação. A famosa escola de samba Vai-Vai foi fundada no Bixiga em 1930. Flávia afirma que a Vai-Vai “faz parte da identidade do bairro e do que ele é”. Mesmo assim, a escola está sem uma quadra definitiva desde 2021, quando o antigo local foi derrubado para a construção da Linha 6-Laranja do metrô.
O movimento de reafirmação da presença negra em espaços emblemáticos de São Paulo ganhou força nos últimos anos. Um exemplo nesse sentido é o do bairro da Liberdade, que entre os séculos 18 e 19 foi o cenário de violência contra escravizados negros. No Largo do Pelourinho e no Largo da Forca, aconteciam castigos e execuções públicas, enquanto no Cemitério dos Aflitos eram enterrados os mortos. Anteriormente, a estação de metrô e a praça do bairro da Liberdade, referenciado principalmente por sua presença japonesa, tiveram os nomes modificados em 2023 para Liberdade África-Japão, um passo importante para lembrar a importância dessa parte esquecida da história.
No Bixiga, a retomada da memória negra da comunidade se intensificou em 2022, quando foram encontrados vestígios arqueológicos do Quilombo do Saracura nas escavações da obra da Linha 6–Laranja, no local onde antes ficava a quadra da Vai-Vai.
Segundo Flávia, o que chamam de descoberta foi o reforço de algo que os moradores já sabiam. “O encontro com o sítio arqueológico vem para dar materialidade a uma série de histórias que já eram contadas. Não que a história oral precise de materialidade, mas acho que, de certa forma, estamos vendo que existe, que é possível pisar nesse chão, recolher essas peças, entender essas relações. Entendo que para a comunidade seja quase como uma reafirmação do que eles já sabiam”, diz a pesquisadora.
Movimentos como o Saracura/Vai-Vai vêm lutando para a criação de um projeto de preservação dos artefatos encontrados e da memória popular. Em 2024, houve a alteração do nome da estação de 14 Bis para 14 Bis-Saracura, mas ainda há mais coisas a serem repensadas.
“É pensar um pouco como essa estação de metrô chega. Pensando que os imóveis ao redor vão valorizar. Para o proprietário, eventualmente pode ser bom, mas tem a questão de que tudo ao redor começa a ficar mais caro”, diz Flávia. Para a pesquisadora, os preços são uma das formas de inviabilizar a permanência de uma parcela dos moradores. “Em momentos históricos diferentes, estão expulsando quem está ocupando esses lugares. Estratégias diferentes, mas, no final, acabam indo para o mesmo caminho”, avalia.
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles