Por Paulo Salvador
Dirigido e interpretado por Antônio Pitanga, com elenco extraordinário, o filme Malês recupera a história do levante dos africanos muçulmanos escravizados na Bahia, em 1835.
O final é conhecido. O enredo também. Os Malês eram africanos escravizados sequestrados na Costa dos Escravos (Togo, Benin e Nigéria) trazidos para o Brasil. No filme é Salvador, na Bahia.
O termo Male vem do iorubá imalê, que significa muçulmano. Outras derivações apontam para leitura e escrita. Para ler o alcorão, aprendiam a ler e escrever e eram mais instruídos que seus senhores. Em janeiro de 1835 há uma rebelião que, mesmo sufocada pelas forças imperiais, impactou profundamente as relações sociais por ter sido a maior revolta dos escravizados na história do Brasil. Era intenção dos revoltosos dizimar os escravistas.
O filme conta essa história com competência cinematográfica e histórica. Antônio Pitanga, com 86 anos, é um dos mais expressivos atores negros do cinema brasileiro dos anos 60. Em torno do seu personagem, Licutan, um idoso preso, gira uma parte do levante, cujo objetivo final era a liberdade.
Pitanga acalentou o desejo de realizar o filme por 29 anos, formou um elenco com seus filhos Rocco e Camila, acompanhados de outros também talentosos atores e atrizes, utilizou gravações de imagens fechadas (close) para dar mais dramaticidade as expressões faciais e movimentos, que ficam exuberantes na telona do cinema.
O enredo se desenvolve com o sequestro de um casal no dia do casamento, que são mandados para Bahia separados e o filme trata da permanente busca de um pelo outro. Essa é uma simples chave para contar a vida na Bahia logo após a independência. O filme tem a consultoria de José João Reis, dedicado pesquisador do período, cujas publicações valeram inúmeros prêmios pelo mundo afora.
O expectador vê a ação de outros africanos, os capitães do mato, no sequestro de pessoas para escravizar. A alfabetização através da leitura do Alcorão é determinante para construção da comunidade, a preservação do material usado na alfabetização ganha destaque na revolta e foi na pesquisa de pedaços de papeis que os pesquisadores conseguiram recuperar a presença daqueles muçulmanos no Bahia.
O filme faz referência à libertação da Bahia em 2 de julho quando um alforriado xinga um destacamento militar no império por não ter cumprido a promessa de libertar os que lutaram para expulsar as cortes portuguesas. Em dose certa de cena, desfilam os maus tratos, estupros, dramas familiares, o amor e os cultos tanto de Oxalá como Maomé. As escolas católicas têm o seu quinhão de horrores. A presença dos malês na Bahia mostra que a nação de escravizados era diversa, de muitas etnias e religiões.
É a delação de uma mulher, que não queria que seu marido participasse do levante, que a leva a mostrar o local onde estavam os revoltosos. Patrícia Pilar faz uma mulher escravista cruel e mulheres escravizadas participam do levante, o que inclui Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama. A mãe de santo destaca a força da mulher na luta quando a comunidade de Oxalá é chamada a se unir ao levante.
Aplaudido, o filme ajuda a compreender o papel parasitário dos senhores e senhoras escravistas, a luta por liberdade do povo negro e a reduzir o preconceito contra os muçulmanos, tão enraizado no ocidente por influência da guerra cultural de Hollywood.

Paulo Salvador é jornalista, diretor do Radar Democrático e ex-presidente da TVT News.
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.