Por Silvana Salles, do Jornal da USP

O kit educativo inclui dez objetos disparadores de saberes, um pano tradicional, três mapas impressos em tecido e um livro – Foto: Tabita Said / Jornal da USP

O kit educativo inclui dez objetos disparadores de saberes, um pano tradicional, três mapas impressos em tecido e um livro – Foto: Tabita Said / Jornal da USP

A mesa na lateral direita do salão dispunha à mostra os dez objetos disparadores de saberes que formam o Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP: a estatueta de Exu, o abebé, o balangandã, a pulseira Vodu, o cachimbo, o pente afro, a máscara africana, a Akuabá, o jogo de Mancala e o reco-reco. Todos eles, sobre o colorido tecido africano que cobria a mesa, à vista dos visitantes que chegavam ao Terreiro de Candomblé Inzo Tumbansi, em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, para um longo dia de atividades no sábado, 15 de março.

O dia era de celebração, com acadêmicos, educadores, ativistas antirracistas, líderes e fiéis de religiões de matriz africana reunidos para conhecer o primeiro kit educativo do MAE construído conjuntamente com outras organizações e de forma participativa. É uma iniciativa inédita por ser também o primeiro dedicado à história e cultura da África e dos afrodescendentes. Entre os presentes no terreiro, era alta a expectativa de que o kit se consolide como uma importante ferramenta antirracista no arsenal dos professores do ensino fundamental e médio.

A celebração no Inzo Tumbansi começou com a chegada da matriarca do Terreiro Tumbenci de Maria Neném, Nengwa Lembamuxi, que viajou de Salvador a São Paulo para participar do evento. Diante de um público majoritariamente formado por professoras e professores de diferentes modalidades de ensino, ela abriu os trabalhos invocando os atabaques e saudando Nzila, inquice a quem se pede licença no começo de cada cerimônia.

O evento contou com a participação de representantes do MAE, do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, da Prefeitura de Itapecerica da Serra e da Câmara Municipal da cidade. Também estiveram presentes Suelaine Carneiro, do Geledés – Instituto da Mulher Negra, e o pesquisador e músico Tiganá Santana, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da pós-graduação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

Conforme anunciou o professor Camilo de Mello Vasconcellos, vice-diretor do MAE, o novo kit educativo “é a primeira iniciativa colaborativa do MAE com as pessoas que vão usufruir dele”. “A academia está saindo do seu castelo e vindo dialogar com outras academias”, completou o docente. “Com outras academias!”, exultou Tata Katuvanjesi Walmir Damasceno, liderança do Inzo Tumbansi, destacando o papel educativo que o terreiro cumpre ao preservar e transmitir conhecimentos ancestrais.

“Era um sonho antigo nosso poder fazer o kit, porque são 40 anos que o MAE faz esses kits e, apesar de ter a coleção africana e afro-brasileira que a gente tem, a gente não tinha conseguido”, contou a arqueóloga Patrícia Marinho, mestre e doutora pelo MAE, à reportagem do Jornal da USP.

Kit educativo já nasceu antirracista

Segundo Patrícia, que é representante do coletivo de pesquisadores negros que trabalharam na elaboração do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro, o projeto já nasceu antirracista. Por isso mesmo, a contribuição dos pesquisadores negros foi fundamental. “A gente traz a experiência de vida dessas pessoas. Tem muita gente que é do santo, e a própria experiência da negritude, (de) sentir na pele. Então, era muito importante a participação dessas pessoas, principalmente dos estudantes”, disse a pesquisadora.

Patrícia Marinho exibe um dos mapas produzidos para compor o kit educativo – Foto: Silvana Salles, Jornal da USP

Patrícia Marinho exibe um dos mapas produzidos para compor o kit educativo – Foto: Silvana Salles, Jornal da USP

O projeto recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC), por meio de uma chamada de 2022, na linha Divulgação Científica e Educação Museal em Espaços Científico-Culturais. Foi construído ao longo de dois anos de trabalho, em uma colaboração que uniu estudantes e profissionais do MAE, educadores do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, representantes da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, integrantes da comunidade do Inzo Tumbansi e pesquisadores do Laboratório Abya Yala, ligado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP.

“O Museu Afro Brasil tem profissionais negros, a secretaria tinha. Agora, o MAE, em termos de coordenação, não tinha funcionários negros. Não temos professores negros. Continuamos não tendo professores negros, continuamos não tendo professores indígenas. Então, é fundamental a participação de quem se formou lá, dos estudantes negros que se formaram lá e vão se formar lá, enquanto a gente não consegue quebrar essa bolha hegemônica da branquitude”, destaca Patrícia.

Segundo integrantes da equipe do MAE, a participação de Tata Katuvanjesi e da pesquisadora e professora Liliane Braga, que ocupa o cargo de Kota no Inzo Tumbansi e também atende pelo nome Ndembwemi, foi fundamental para dar forma ao projeto, ainda no primeiro ano de trabalho. A concepção do kit educativo avançou a partir do acolhimento que o terreiro deu à equipe. A seleção dos objetos aconteceu no segundo ano, orientada pelo objetivo de ser representativa das coleções do MAE e do Museu Afro Brasil, bem como da diversidade cultural do continente africano.

Valorizando ancestralidades diversas

Capa do livro Kit Educativo Africano e Afro-brasileiro - Reprodução
Capa do livro Kit Educativo Africano e Afro-brasileiro – Reprodução

O Inzo Tumbansi é uma comunidade tradicional de matriz centro-africana Congo-Angola, de feição Bantu. Trata-se de uma tradição menos estudada que as dos terreiros de tradição Iorubá, grupo étnico-linguístico que também é conhecido como Nagô. Por isso, Tata Katuvanjesi e Liliane Braga destacam a importância de ter a cultura Bantu como componente do material.

“O antropólogo Nina Rodrigues considerava a tradição nagô como mais elevada do que a religiosidade dos povos Bantu e isso influenciou os estudos antropológicos em todo o Brasil por cerca de um século. Fazia falta aos centros de pesquisa de estudos afro-brasileiros estudar as muitas Áfricas que aportaram no Brasil, e a USP se incluía aí também. Ademais, fazia falta incluir no protagonismo desses estudos pesquisadores e fazedores da cultura afro-brasileira, algo que parece estar sendo feito com essa iniciativa do MAE”, explicaram Tata e Liliane ao Jornal da USP.

Quem fez a ponte entre o MAE e o terreiro foi Patrícia Marinho. “Ela está em contato com o Inzo Tumbansi desde quando ainda era estudante de graduação e realizou pesquisa junto ao terreiro. Aliás, foi no Inzo Tumbansi que ela bateu acarajé pela primeira vez”, lembram Tata e Liliane.

Para Patrícia, o lançamento do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro representou a recuperação de conhecimentos que foram sequestrados durante a diáspora africana. Bastante emocionada, no salão do Inzo Tumbansi ela apresentou um a um os componentes do kit, com a ajuda de outras professoras que integram a comunidade do terreiro. “A agência presente nos objetos que compõem o kit desafia educadores e educadoras a incorporarem cultura, história e tecnologias numa perspectiva educacional antirracista nas salas de aula e em diversos espaços de construção do saber”, explicou à reportagem.

A valorização da ancestralidade africana também se refletiu na escolha em buscar por artesãos que preservam técnicas tradicionais para a produção dos objetos do kit educativo, em vez de recorrer a empresas que utilizam processos industriais. Os primeiros encontros de orientação com professores do ensino básico para uso do kit educativo já aconteceram. Agora, ele segue para as salas de aula. As malas contendo os materiais estão disponíveis para empréstimo às escolas. Tanto escolas públicas quanto particulares podem solicitar o empréstimo.

Atividade valorizou o terreiro de candomblé como espaço de produção e disseminação de conhecimento. Na imagem, as lideranças religiosas Nengwa Lembamuxi (à esquerda) e Tata Katuvanjesi (centro, falando ao microfone) – Foto: Silvana Salles, Jornal da USP
Atividade valorizou o terreiro de candomblé como espaço de produção e disseminação de conhecimento. Na imagem, as lideranças religiosas Nengwa Lembamuxi (à esquerda) e Tata Katuvanjesi (centro, falando ao microfone) – Foto: Silvana Salles, Jornal da USP

“Assim como os africanos e africanas foram sequestrados de seus lares e entes queridos, seus saberes e conhecimentos também foram subtraídos. Essa pequena amostra de 10 objetos do Kit Educativo representa uma oportunidade única de trazer à luz esses saberes, que geralmente só são acessíveis em museus ou em contextos afrocentrados, como terreiros, quilombos e centros de aquilombamento. Agora, esses materiais pedagógicos estão disponíveis para a formação de estudantes e pessoas interessadas em contar uma história que foi sequestrada e silenciada, em decorrência do violento processo do tráfico transatlântico de africanos, que se reflete no racismo que estrutura a sociedade na atualidade.” Patrícia Marinho, arqueóloga

O livro que acompanha os objetos teve uma tiragem impressa de mil exemplares, dos quais 386 foram distribuídos nos dois eventos de lançamento do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro – o primeiro evento, realizado nas dependências do MAE, aconteceu em 26 de fevereiro. A publicação também está disponível em formato digital para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP.

Além da apresentação do kit e da plenária com os participantes, o sábado no Inzo Tumbansi contou com um farto almoço, roda de capoeira e o lançamento do documentário Exu na Frente, que registra o processo de produção do kit educativo. Em 29 minutos, o documentário traz bastidores do processo e entrevistas com representantes dos institutos e servidores que integraram o grupo de trabalho. O filme contou com a direção de Ader Gotardo, ele próprio um dos pesquisadores negros que participaram do processo, e pós-produção do Abya Yala, da FAU.

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