
A orla do rio Piracicaba, um dos cartões-postais e berço cultural da cidade, está no centro de um embate sobre o futuro do desenvolvimento urbano. O movimento Salve a Boyes, que reúne a sociedade civil em defesa do patrimônio, critica um projeto de verticalização que ameaça não apenas a paisagem local, mas também a identidade histórica e cultural de Piracicaba, ecoando um debate que se estende por diversas cidades paulistas e brasileiras. A discussão foi tema de entrevista no Radar Democrático com Paulo José Keffer Franco Netto, o Pazé, artista visual e membro do movimento, e Rai de Almeida, vereadora do PT em Piracicaba.
O movimento Salve a Boyes surgiu há dois anos em resposta a um projeto de verticalização na antiga fábrica da Boyes, um trecho de “maior valor histórico, paisagístico e cultural da cidade”, conforme explicou Pazé. A área, que pertenceu à indústria criada por Luiz de Queiroz, patrono da Esalq/USP, é considerada “muito sensível” e “passou a ser objeto dessa especulação imobiliária”, alertou o artista visual.
Veja a entrevista de Pazé e Rai de Almeida na íntegra
A vereadora Rai de Almeida reforça a simbologia do movimento: “o Salve a Boyes, é um movimento que tem uma simbologia de extrema importância para a garantia dos patrimônios da nossa cidade, aqui de Piracicaba, que estão sob ataque.”
Verticalização: Um Modelo Extrativista e Excludente
A crítica central dos entrevistados vai além do caso específico da Boyes, apontando para um modelo de desenvolvimento urbano que, segundo Rai de Almeida, “está em curso em Piracicaba, mas não só, que é a verticalização das cidades e a despatrimonialização daquilo que são as nossas riquezas em toda a nossa cidade, em especial na orla do Rio Piracicaba.”
Pazé compara essa lógica a um processo extrativista: “É uma lógica que eu considero muito próxima da lógica extrativista, de você fazer uma extração de um mineral, você vai destruir aquela paisagem.” Ele atribui ao movimento modernista na arquitetura, iniciado no século XX, a “destruição das cidades brasileiras”, que antes eram “muito bonitas”. Segundo o entrevistado, “com a entrada do modernismo, todo o regramento urbano foi destruído”, abrindo caminho para um “lucro fácil” e a desconsideração do entorno e do patrimônio. Essa busca por segurança, por sua vez, gera “muros, grades, cercas elétricas” que “vão poluindo visualmente as cidades”.

A preocupação é que a verticalização na orla do rio Piracicaba crie um precedente perigoso. “Se houver a primeira verticalização na orla do rio Piracicaba, eles vão conseguir verticalizar tudo. Isso aqui vai virar uma calha de um rio com os dois lados”, alertou o entrevistado. Ele destaca que as leis de zoneamento e os planos diretores são frequentemente alterados para favorecer essa “verticalização desenfreada”, um fenômeno que “acontece no Brasil inteiro” e “não é um caso isolado”.
Interesses Imobiliários e o Papel do Legislativo
A vereadora Rai de Almeida lembrou que a fábrica Boyes, embora parcialmente tombada, foi adquirida em leilão por um “valor muito vil, se você pensar nesse patrimônio e no seu valor histórico e cultural, da ordem de 5 milhões de reais”. Ela também apontou que os proprietários do empreendimento proposto não pagaram o IPTU, acumulando uma dívida de “mais de 10 milhões de reais”. Há uma suposta “estratégica política” de “destruição daquele espaço” para justificar a construção e fazer valer o discurso de “desenvolvimento” e “modernidade”.
A atuação da Câmara de Vereadores é questionada. A vereadora Rai de Almeida corroborou, afirmando que “o Legislativo, infelizmente, ele está muito mais tendente a defender aos interesses especulativos e imobiliários do que os interesses de uma cidade, de fato, moderna e atrativa do ponto de vista turístico, cultural e histórico”.

Os críticos do empreendimento são frequentemente estigmatizados “como aqueles ou aquelas que são contra o desenvolvimento da cidade, como se o desenvolvimento da cidade passasse pela construção dessas quatro torres naquele espaço”, lamentou Pazé. No entanto, a visão de desenvolvimento defendida pelo movimento é outra: “você construir torres, a população não vem, os turistas não vão para uma cidade que não tem um atrativo é da sua beleza, da sua cultura, do seu verde, do seu rio.”
Por uma Cidade Inclusiva, Democrática e Preservada
A discussão sobre o Plano Diretor de Piracicaba, que está em revisão, é vista como uma oportunidade para repensar o modelo de cidade. “Primeiro, a gente tem que pensar numa cidade em que ela seja inclusiva”, defendeu a vereadora Rai de Almeida. Ela aponta o “vazio urbano” de 50% em Piracicaba, que serve à especulação imobiliária, enquanto as periferias carecem de “inclusão, cultura, saneamento básico”.
A visão de uma “cidade inteligente” para Piracicaba, segundo os entrevistados, deve ser “olhada do ponto de vista social, cultural, histórico, econômico”, e não apenas focada na “inovação imobiliária” que beneficia uma minoria. “A gente pensa numa cidade que ela seja democrática, que ela seja pensada do ponto de vista de toda a sua população e olhando, inclusive, para os seus patrimônios culturais, que eles sejam equipamentos também acessíveis a todas as pessoas”, afirmou Rai de Almeida.
Piracicaba, apesar de ser a 24ª maior economia municipal do país, “perdeu 10 pontos no ranking de cidades inteligentes” de janeiro a outubro de 2025, indicando um “retrocesso, num atraso”. Pazé destaca a carência de profissionais, com “uma cidade de mais de 400 mil habitantes que só tem um arquiteto trabalhando na cidade”. A solução passa pelo “fortalecimento do planejamento urbano para uma cidade do futuro”, que contemple a todos, incluindo creches e escolas próximas, e transporte coletivo eficiente, seguindo o conceito de “cidade de 15 minutos” proposto por Rai.

A Rua do Porto, a Piracema e a Casa de Luiz de Queiroz são exemplos do potencial turístico e cultural que a preservação pode oferecer. “Só nisso, se fosse preservado corretamente, e fosse padronizado janelas e portas como era no passado, isso já daria um ganho para o turismo da cidade imenso”, disse Pazé.
A vereadora Rai de Almeida conclui com a visão de uma “cidade justa do ponto de vista socioeconômico e cultural, e que todas os cidadãos possam ser vistos como pessoas e não como meramente dados econômicos e financeiros. A gente precisa pensar em uma sociedade socialmente justa.”

