Por Rosângela Ribeiro Gil

Ao telejornal mais antigo do País, o Jornal Nacional, hipnotizador da maior audiência em território nacional, cabe fazer o que sempre fez: dar sua versão dos fatos. Outros telejornais, mesmo com menor audiência, mas ainda beneficiados por uma circulação social significativa, completam a forja da nocividade ideológica. Todos seguem a cor do dinheiro e do poder, alguns até amparados em instituições religiosas, como a TV Record de Edir Macedo.
Todos, para usar uma expressão popular, são “farinha do mesmo saco” – do saco do capital que quer lucro, poder e criar a imagem permanente e, se possível, imanente, do privado como o melhor e o público, como o lado ruim da vida em sociedade.
“Tudo se passa como se o órgão de imprensa agisse sob o domínio de um princípio que dissesse: se o fato não corresponde à minha versão, deve haver algo errado com o fato.”
Perseu Abramo
Aqui faço um parêntesis com relação à categoria público. À mídia empresarial, o público se relaciona ao Estado e está em contraposição ao mercado ou à livre iniciativa e a governos mais sensíveis às demandas sociais e populares.
A mídia dos grandes empresários – laicos ou religiosos – querem normatizar o privado como espaço naturalmente superior e positivo para se viver e com as melhores, boas e rápidas ações, e o silenciamento e a demonização do que é o público, do que vem como ações do Estado – principalmente dos governos mais à esquerda ou mais aderentes a políticas públicas beneficiadoras da parte mais marginalizada da sociedade.
Por força de minha pesquisa de dissertação, acompanho, de forma mais assídua, o telejornal cinquentenário, criado na pior fase da ditadura militar de 1964, na linha dura do Ato Institucional nº 5. Nasceu com a promessa de integrar o país nacionalmente, mesmo com um Brasil dilacerado, dividido e massacrado pela tortura, pelos assassinatos, pelos desaparecimentos de quem se opunha às atrocidades ditatoriais de militares e políticos financiados pela iniciativa privada.
O Jornal Nacional nasceu em pleno Brasil calado à força.
Notícia de classe
A notícia do Jornal Nacional, assim como os donos da Rede Globo de Televisão, braço comunicacional cruzado da empresa Globo Comunicação e Participações S.A., pertence a uma classe.
Os donos da empresa Globo Comunicação não são operários, professores de uma escola pública ou privada, profissionais liberais, empreendedores, trabalhadores de plataformas digitais, sem-terra, sem-teto, moradores em situação de rua, autônomos, muito menos estão desamparados num contrato intermitente ou temporário de trabalho. Também não se enquadram como entidades filantrópicas ou beneficentes.
Eles são donos de um conglomerado de comunicação que gera lucros estratosféricos e que, por isso, estão em outras atividades econômicas. São proprietários (ou concessionários?) de um bem público, a radiodifusão, que está no ar e se transforma em imagens, sons e conteúdos diversos que podem atingir milhões de pessoas ao mesmo tempo.
Tragédia do Sul

O Brasil enfrenta as consequências de um desenvolvimento econômico que não tem regras (ou melhor, tem as regras do capital), desenfreado e desumano que se ampara nas ações ou na falta delas de governos municipais e estaduais, principalmente.
Em abril de 2024, grande parte da região Sul do País foi inundada, matando mais de 183 pessoas (seguem, ainda, mais de 20 desaparecidos, segundo dados oficiais) e animais, arrastando vegetação, destruindo casas, desabrigando milhares de famílias, isolando cidades e colocando a capital Porto Alegre quase submersa.
Uma tragédia, como muitos já o disseram, anunciada. Ao telejornal mais antigo do País coube levar a sua notícia sobre a situação para milhões de brasileiros sintonizados na sua tela. Vimos um Jornal Nacional, sob o manto do bom e profissional jornalismo, ainda mais afastado da imparcialidade e da pluralidade.
Para os consumidores daquela notícia, só restava praguejar contra as chuvas e as águas que invadiam cidades, casas, empresas. Falava-se apenas dos efeitos, mas não das causas, apesar de a tragédia ter nomes e sobrenomes de diversos prefeitos, parlamentares e governador gaúchos. Isso não apareceu nas notícias do telejornal de horário nobre da Globo. Ao contrário, os culpados apareceram como vítimas ou surpresos com o que estava acontecendo.
Nessa construção noticiosa de poupar quem não deveria ser poupado, o telejornal despachou o editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional para Porto Alegre, de onde faria sua aparição diretamente das águas. Vimos William Bonner, ao vivo a céu aberto, se equilibrando em espantar mosquitos e convidar anônimos para falar de suas experiências de ter perdido casa, de ter socorrido alguém, de doar alimentos ou atenção para quem estava mais precisando.
Aqui não está em discussão a dor das pessoas, a tragédia de perder a vida, histórias, casa, trabalho, mas da utilização do sofrimento humano para notícias que não explicam, não questionam, não colocam o poder público contra a parede para cobrar (ir)responsabilidades.
Cozinhando em banho-maria
Uma das cenas mais patéticas dessa cobertura foi ver Bonner, com um sorriso meia-boca indecifrável, na cozinha de um curso de gastronomia, na edição do dia 11 de maio de 2024. Uma amiga, moradora de Porto Alegre, revoltada enviou-me mensagem: “É o fim da picada ver o Jornal Nacional fazer “publi” de curso de uma universidade privada.”
Ela referia-se ao espaço da encenação da notícia do JN daquela noite. Víamos homens e mulheres, que Bonner descreveu serem professores, voluntários e funcionários da instituição de ensino, mexendo grandes panelas de comida para ser entregue “aos flagelados das enchentes”. O que menos se via, naquelas imagens, era emoção, calor humano.
Para completar o fato inexistente, Bonner entrevista(?) o prefeito de Porto Alegre. Do início ao fim da aparição, cuja duração foi inexplicável 04:49, o alcaide porto-alegrense entregou o nada e ainda deu “voltinha” no editor-chefe do telejornal ao não responder, na cara dura, uma pergunta sobre alterações em legislações ambientais. Uma comida sem sal que o Jornal Nacional ofereceu à mesa de jantar da sua audiência. Como diria meu sobrinho, na sua sabedoria aos nove anos de idade, cena tosca: um finge que entrevista e o outro finge que responde.
Ainda na “publi”, o JN entrevistou, claro, a coordenadora do Curso de Gastronomia da universidade sobre atendimento aos atingidos pela enchente. Mas a azeitona da empada ainda estava por vir: o JN finaliza a edição daquele dia com Bonner, ainda com um sorriso indecifrável, no fundo da cena olhando as panelas ainda sendo mexidas.
Se o Jornal Nacional escolheu uma cozinha fria de uma faculdade privada, lá fora, onde o telejornal da Globo não quis ir, tinham as cozinhas solidárias de movimentos sociais, como os dos sem-terra (MST) e dos sem-teto (MTST) e de sindicatos de trabalhadores, que se organizaram já nas primeiras horas da tragédia para entregar comida a quem precisava.
A ideologia da notícia
A filiação ideológica do Jornal Nacional sempre está encoberta para que a criação das evidências de consenso sobre determinado debate público apareça como verdade única. Quem tem o poder dessa mídia invisibiliza, oblitera ou desacredita posições diferentes e contrárias.
Na posição de polêmica não existe apenas um lugar, uma forma de interpretar e dizer, mas quando se produz evidência, se naturaliza, se apaga a possibilidade do contrário. É uma censura silenciosa.
Quando existe a voz crítica se reconhece o lugar do outro para dizer alguma coisa a mais naquela disputa. Na hora em que se produz a evidência, se deixa o outro sem discurso…sem voz. E é isso o que o Jornal Nacional faz o tempo todo, ele coloca tudo tão evidente para todos.
O enquadramento ideológico do Jornal Nacional silencia vozes críticas à supremacia privada. Quando noticiadas, as ações do Estado não dizem o que precisam dizer. A audiência precisa fazer um grande esforço para entender que foi o Estado, ou governo federal, que liberou recursos; coordenou a liberação das Forças Armadas para salvar pessoas, reconstruir pontes, religar cidades isoladas; estruturou equipamentos públicos para atender à população em diversas frentes, da saúde ao resgate físico de pessoas e animais etc.
No Jornal Nacional, não saberemos que, para tantas ações, o Estado não pode ser mínimo. Assim como fica incompreensível saber quem é o tal mercado que fica triste ou alegre na hora em que os juros sobem ou descem.
Consumir notícia desse tipo não nos traz informação para mudar, formar e refletir sobre o que aconteceu no Rio Grande do Sul, por exemplo. Por não questionar a falta de ação do poder público municipal e estadual, a maior catástrofe ainda continua em aberto: votar em homens e mulheres adeptos do discurso liberal, do Estado mínimo, do negacionismo e da falta de respeito à diversidade para ocupar legislativos e executivos Brasil afora; ou mesmo reconduzir aos cargos aqueles que não fizeram nada nas prefeituras, câmaras de vereadores ou governo estadual gaúchos.
O resultado das eleições municipais de 2024, principalmente no Rio Grande do Sul, infelizmente confirmam o quanto estamos longe da “verdade dos fatos” e “presos” à notícia ideológica da mídia empresarial.
Rosângela Ribeiro Gil, jornalista, é integrante do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC).
* O Radar Democrático publica artigos de opinião de autores convidados para estimular o debate.